sábado, 6 de abril de 2019

OLHAR AS CAPAS



O Caso do Beco das Sardinheiras

Mário de Carvalho
Capa: Graça Martins
Ilustração: Adelaide Penha e Costa
Edições Rolim, Lisboa, Outubro de 1985

Meus caros, vejam lá se compreendem uma coisa. Um autor tem que se defender, estão a perceber? Eu cá fiz estas histórias porque simpatizo convosco, mas não podem exigir-me muito mais. Vocês não vêem que se eu continuo a fazer histórias a vosso respeito, depois fico dentro delas e não consigo sair.
É que isto da literatura, meus amigos, tem os seus pergaminhos, a sua dignidade: A-dignidade-do-discurso-literário.
Olhavam agora os três para mim, de olhos em alvo, as bocas muito abertas.
- pois é – continuei – já estou até meio repeso de ter escrito as histórias que escrevi. É que não é a minha vocação, percebem? Eu cá gostava era de escrever assim coisas grandes como o Gilgamesh, a Odisseia, a Moby Dick e não os pequenos casos do Beco das sardinheiras e da sua arraia miúda, não desfazendo. Sabem o que eu ganho com isto, sabem? Pois bem: vão-me chamar um escritor menor, vão-me acusar de estar para aqui a fazer literatura de miuçalha, de facilidade, de pechisbeque, de cutiliquê, literatura patchuli, literatura pataqueira, hã? E se calhar até lhes dou razão. Só que eu não tenho culpa que vocês me tenham assaltado os sonhos…
- E nós também não – replicou o Zé Metade, de braços cruzados, muito belicoso.
- Seja -, volvi eu – mas o comer e o coçar vai do começar. Se não me precato nunca mais faço outra coisa senão histórias do Beco, da Sétima Esfera e outras quejandas. Isto também cansa, caramba. Estou farto deste populismo-fantástico-humorístico-coiso…
- Olhe -, disse o Zé da Carris – eu cá por mim, para ser franco, parece-me que você está aí com umas complicações do camandro. A gente existe, hã? Não estamos para ser ignorados.
E, depois de uma pausa:
- O amigo não leve a mal, mas responda lá, recusa-se mesmo a contar mais histórias cá do pessoal?
- Nem pensar em tal semelhante – respondi eu – Não posso continuar assim a aviltar a literatura por vossa causa, caramba, tenho que trabalhar um bocado sobre a língua,
Tenho que escrever coisas soturnas, sinistras. Tenho de falar de Tebas…
- Então temos muita pena, mas vamos procurar um outro escritor. Um daqueles que não se importam que lhe chamem escritor menor.
- Pois vão pela sombra que o sol pica – pensei eu, ao jeito do Beco das Sardinheiras. Mas limitei-me a dizer:
- Que vos faça muito bom proveito e desejo muitas felicidades. Vão dando notícias.
Levantei-me e pus fim à conversação.
O Chico conciliador, ainda me travou pelo braço, no corredor, e perguntou em voz baixa:
- Então, nem mais uma história?
- Acabou-se – respondi – a partir de agora, nicles! Nicles bitoles.
- Atão, prontos! – retorquiu, desafiador.
À porta despediram-se com alguma cerimónia. Mas já dentro de casa, ainda os ouvi dizer enquanto esperavam pelo elevador:
- Quer-me cá aparecer que este gajo está a fazer uma confusão do caneco entre género humano e Manuel Germano… 

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