sábado, 20 de abril de 2019

SARAMAGUEANDO


A afirmação de que a escritora Isabel da Nóbrega, então companheira de José Saramago, o ensinara a comer de faca e garfo, tal como se pode ler em Rota de Vida, é daquelas que nos levam a pensar em que mundo vive determinado tipo de gente.

 «Se não fosse a Isabel, quem seria o Saramago, que nem sabia comer à mesa?»

O arrepiante depoimento de um tal Carlos Leça da Veiga…

Qual a importância do pormenor?

Que ganho a escrita de Saramago teve pelo facto de ele saber comer à mesa?

Entristeço-me com estas miudezas, dano-me…

Que dirão essas excelsas-pessoas-tão-bem-educadas, quando José Saramago, no 2º volume dos Cadernos de Lanzarote, revela que frequentou a Sopa dos Pobres, na Avenida Almirante Reis, frente à Igreja dos Anjos?

Saberão o que é a Sopa dos Pobres?

Sabem com toda a certeza, mas não conseguem interiorizar que um Nobel da Literatura por lá tenha passado.

Já por aqui reproduzi esse passo dos Cadernos, mas volto a repetir:

«Num artigo de Ângela Caires publicado na Visão, sobre António Champalimaud, leio que o tio Henrique Sommer, em carta com valor testamentário dirigida às manas Albana e Maria Luísa, lhes recomendava que não se esquecessem de distribuir, pelo Natal, dois contos de réis à Sopa dos Pobres da Freguesia dos Anjos, de Lisboa. Naturalmente, o generoso Sommer (que em glória esteja) desejava que não sofresse mudança, depois do seu passamento, a beneficente prática que instituíra.
Quem poderia imaginar que esta informação, escrita ao correr da pena, viria lançar uma luz nova sobre a minha biografia secreta? De facto, não foram poucas as vezes, no tempo da adolescência, que ocupei um envergonhado lugar na fila de aspirantes à sopa e ao quarto de pão que se serviam naquele atarracado e soturno edifício fronteiro à Igreja dos Anjos… Mais ou menos por essa altura devo ter aprendido na aula de Física e Química da Escola Industrial Afonso Domingues o princípio dos vasos comunicantes, mas só hoje é que consegui perceber, sem reservas mentais nem dúvidas formais, como se efectua a transmissão da riqueza e do bem-estar dos que estão em cima para os que estão em baixo, do conto de réis para o quarto de pão, da fartura para falta. Por muitos que fossem os seus pecados, Henrique Sommer nunca ficaria no inferno, sempre haveria uma concha da sopa para o tirar de lá…»

1 comentário:

Seve disse...

Que pobreza mental, a de certa gente!