Capa do programa do filme Uma Abelha na Chuva,
um trabalho cuidado: oito páginas ilustradas, um artigo de António Pedro
Vasconcelos a contar das dificuldades do novo cinema português, uma selecção de
declarações de Fernando Lopes sobre as filmagens, a montagem do filme., um
artigo de Eduardo Prado Coelho fazendo a ligação entre o livro e o filme, uma
breve biografia de Carlos de Oliveira e o poema Cinema extraído de Sobre oLado Esquerdo.
«A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva.
Sofreu de tudo. Os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a amocharem-lhe
o voo; sacolejões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra. A chuva
espezinhou-a, arrastou-se no saibro, debateu-se ainda. Mas a voragem acabou por
levá-la com as folhas mortas.»
João César Monteiro
não tinha qualquer dúvida quando afirmou: «devo dizer que foi com o poeta Carlos de Oliveira que mais aprendi de
cinema.»
Contra capa do programa de Uma Abelha na Chuva com a reprodução do poema Cinema de Carlos de Oliveira:
CINEMA
I
O écran petrificado,
muros, ossos,
o movimento áspero da câmara
mergulhando nos poços
das leis universais,
o rigoroso cálculo da luz
em que a matéria já cansada,
autómatos, metais,
se envolve pouco a pouco
no vagaroso amor
que é o trabalho quase imperceptível
das manchas de bolor,
a ferrugem, o espaço rarefeito,
e um relógio apressado no meu peito.
II
A lentidão da imagem
faz lembrar
o automóvel na garagem,
o suicídio com o gás do escape,
quer dizer,
o coração vertiginoso
e a lentidão do mundo
a escurecer
nas bobines veladas
dos suaves motores crepusculares
ou, por outras palavras,
flashes, combustões,
entregues ao acaso das artérias,
melhor, das pulsações.
III
Radioscopia incerta
como nós,
mas provável, exacta
na dosagem da sombra com o cálcio
da sua arquitectura
milimetricamente interior,
transforma-se o espectáculo
por fim
no próprio espectador
e habita agora
a fluidez do sangue:
cada imagem de fora,
presa ao fotograma que já foi,
de glóbulo em glóbulo se destrói.
I
O écran petrificado,
muros, ossos,
o movimento áspero da câmara
mergulhando nos poços
das leis universais,
o rigoroso cálculo da luz
em que a matéria já cansada,
autómatos, metais,
se envolve pouco a pouco
no vagaroso amor
que é o trabalho quase imperceptível
das manchas de bolor,
a ferrugem, o espaço rarefeito,
e um relógio apressado no meu peito.
II
A lentidão da imagem
faz lembrar
o automóvel na garagem,
o suicídio com o gás do escape,
quer dizer,
o coração vertiginoso
e a lentidão do mundo
a escurecer
nas bobines veladas
dos suaves motores crepusculares
ou, por outras palavras,
flashes, combustões,
entregues ao acaso das artérias,
melhor, das pulsações.
III
Radioscopia incerta
como nós,
mas provável, exacta
na dosagem da sombra com o cálcio
da sua arquitectura
milimetricamente interior,
transforma-se o espectáculo
por fim
no próprio espectador
e habita agora
a fluidez do sangue:
cada imagem de fora,
presa ao fotograma que já foi,
de glóbulo em glóbulo se destrói.
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