Vai agora, pelos campos, para os lados de Vila de
Frades, um apicultor, numa cansada bicicleta pasteleira. Traz no exposto
porta-bagagens um bidão de plástico amarelo, cheio de mel, que muito
desequilibra aquele andar. Pois ainda que vagando sozinho, também faz conversa.
Fala com os seus botões. Nem os solitários escapam ao afã elocutório, porque a
abotoadura, desde que foi inventada, tem o condão mágico e tradicional de
nutrir o paleio. E vem o apicultor a dizer baixinho, mas com convicção: «ora
bem, estes vinte litros de mel distribuídos por cento e cinquenta frascos que
já lá tenho lavados e que não custaram nada porque foram recolhidos nos vidrões
dos supermercados, o trabalhão que isso deu, descontando dez euros para
etiquetas e colas e paninhos para tampas, dá, deixa ver Eleutério (chama-se
Eleutério), deixa ver… A oito euros o frasco, a bela maquia de mil cento e
noventa euros. Com metade, compro sementes de quivi, que é o que está a dar, e
o resto divido em duas partes, uma para comprar uma prenda para a Irina porque
as namoradas em pousio desertam, a outra para comprar um jogo de matraquilhos
em terceira mão que instalo na tasca do meu cunhado, rendimentos a meias». E lá
segue o homem, a pedalar e a falar, por um dos trilhos deste Portugal, muito a
sul. Nisto, espalha-se nos ares a melodia de Smetana, O Rio Moldávia, em notas
fininhas, como vibração de fios de arame invisível, o homem remexe nos bolsos,
tira um objecto brilhante, brada «tá?» e a bicicleta andando, andando, enquanto
o homem comunica, uma das mãos no guiador a outra no Nokia.
Telefones móveis! Soturna apoquentação! Um país
tagarela tem, de um momento para o outro, dez milhões de íncolas a querer saber
onde é que os outros param, e a transmitir pensamentos à distância.
Afortunados ventos que batem todas as altitudes e
pontos cardeais e levam as mais das palavras, às vezes frases inteiras,
parágrafos, grosas delas, para as afogar no mar, embeber nos lameiros de
Espanha, gelar nos confins da Sibéria, perder nas imensidades do éter. É um
favor de Deus único e verdadeiro. O país pereceria num sufoco, aflito de
rouquidões, atafulhado de vocábulos, envenenado de sandices, se a Providência
caridosa lhos não disseminasse por desatinadas paragens.
Mário de Carvalho
em Fantasia Para Dois Coronéis E Um Piscina
Legenda:
ilustração de Mihai Christie
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