Como te calas, poesia, longamente
deixando-me em silêncio dentro de ti.
Tenho esperado amargurado e triste
por um sinal que faças, despertando,
e nada vem dizer-me do que penso e vivo
na solidão do longe em tempo ou espaço,
onde a tua voz lembrava ou distinguia
memórias ou ideias que o vivido já
lançava como luz no não-vivido ainda,
ou no que dia a dia em terra nos transforma.
Eu sei porque te calas. Não é só
que os anos vão passando e nos despindo
de quanto se imagina ou vai julgando
que importa à ciência vácua de pesar-se
nessa balança de palavras tuas
o não pensado acerca de experiências
tão sem-valia no existir sem ti.
Ah não é só. Inquieta-te outra coisa
como um terror além da solidão.
Tu calas-te de angústia. Aquele país
em que nasceste, e sempre tu quiseste
como teu mundo, ainda que no mundo
sempre hás pensado mais que em mundo teu,
se despedaça: os gritos e estalidos
de um povo e um lar abrindo-se em chagas
de irreparáveis ódios e desastres
(quando tanto sonhas-te vê-los livres,
fraternamente em lutas por destinos
tão desde sempre merecidos na desgraça
de ser-se uma nação sempre dos outros),
atingem-te na face, nos ouvidos,
cobrem-te os olhos de visões sangrentas,
e cruzam na tua boca mãos diversas
que tão contrárias tudo calam. Como
hás-de falar da simples vida humana,
ou do viver-se só do amor perdido?
Mas como hás-de de cantar (cantaste outrora)
de uma revolta agora a desfazer-se
em lutas suicidas que condenas?
Mas que hás-de condenar que não pareça
traição aquilo mesmo que aguardavas?
E que aguardavas tu nessa ilusão
de que uma paz é quanto prevalece,
se se abrem de uma vez as portas todas
a mais que à liberdade, a quanto é fúria cega,
ou é sonhar-se negramente a vida
como revolução dos impossíveis?
Eu sei que não tens medo. Mas, perplexa,
recusas misturar-te a uma desordem
em que todos se perdem. Todavia,
é teu dever gritar além os gritos.
Ao menos grita o teu protesto agudo.
O grito do silêncio que te amarra.
A liberdade, a paz, a ordem necessária
a que um país resista ao próprio mal
que leva no seu sangue secular.
Grita por isso a voz do teu silêncio.
Não pela História que as nações inventam.
Mas pelo povo que se esquece inteiro
de que viver-se povo e ser-se povo é mais
que apenas desejar-se morte e sombras,
em nome seja do que for. Ah grita:
importa pouco se te escuta alguém,
no redemoinho tenso da surdez danada.
Porque há-de haver quem ouça, ainda há-de haver
quem ouça. E pouco a pouco pode ser
que o ter ouvido seja como as águas sobem,
cobrindo tudo num cansaço enorme
por essas mesmas águas consumido.
Que as águas venham límpidas, lavando
este veneno antigo do fascismo vil
que nos pensou desordem quando livres fôssemos.
Que as águas venham para a terra seca
em séculos de glória e mesquinhez,
e em décadas de medo e de vergonha.
Tão seca há-de bebê-las. E a verdura
virá de verde recobri-la toda
(como à maldade como somos duros
de tanto ter bebido sangue humano),
trazendo sobre si aquele mundo
em que mesmo dos ódios se construa a casa
para um só povo que dos ódios faça
o espaço e o tempo de existir tranquilo,
com toda a raiva de viver que sempre
fez que viver nos fosse sendo a vida.
Santa Bárbara, 19/10/75
(aniversário de um dia sangrento da história portuguesa).
Jorge de Sena em 40 Anos
de Servidão, Moraes Editores Lisboa Setembro de 1982
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