Dez anos sobre a morte de Augusto Abelaira.
Um homem inteligente, lúcido, um escritor
desconcertante e amável
.
Escreveu pouco mas o pouco que fez está a letras bem
vincadas na História da Literatura do Século XX.
Hoje apenas será (re)lido por gente que tem o gosto
e o prazer por prosa antiga.
Vivia a maior parte dos dias em cafés, a escrever, a
preguiçar.
É dele um dos mais bonitos retratos do que é um
café:
Como
eu escrevo nos cafés, o que eu precisava era que houvesse cafés para, durante a
manhã, estar a escrever. Como os cafés vão desparecendo, a possibilidade de
escrever é cada vez menor. Quando todos os cafés tiverem desaparecido de Lisboa
eu encerro a escrita. Deixo de escrever, isto é, vou morrer, quando fechar o
último café em Lisboa onde possa escrever.
Rareiam cada vez mais, mas ainda há cafés em Lisboa.
Abelaira é que tem faltado ao encontro com a
escrita, com a conversa:
José Gomes Ferreira, em Julho de 1968, nos seus DiasComuns, a dissertar sobre o fecho dos cafés:
Isto
já dá vontade de rir, mas A Cubana também fechou hoje. Sumiu-se. Vai
possivelmente transformar-se em Banco como outros Cafés desaparecidos – com
tanta raiva nossa?
E
agora? Onde instalaremos o novo lar de encontro e convívio diário – indispensável
à saúde intectual de todos nós?
O
Carlos propôs o botequim da esquina em frente.
-Parece
um café de província… De Cantanhede… é estupendo!
(…)
Lá
estivemos hoje no tal café de província da Avenida da República: o Abelaira, o
Carlos, o João José Cochofel e eu.
O
dono é quem faz o cafezinho e serve à mesa.
Rabujento,
aborrecido com todos aqueles herdeiros inesperados d’ A Cubana em frente, que
lhe vinham interromper o ripanço – pregou logo uma descompostura no João José
que, para ficarmos mais à larga, quis juntar duas mesas.
-As
mesas não são para tirar dos sítios… - decretou.
-
Estão colocadas da melhor maneira, para não abanarem e entornarem os líquidos.
Como
quem diz: se não lhe convém ponha-se a cavar.
Encolhemo-nos
humildemente. Os Cafés são tão poucos (é uma espécie em vias de extinção) que bem
merecem as pequeninas humilhações – que só os fátuos repelem ferozes para
parecerem importantes.
Gosto muito de Augusto Abelaira: da escrita, da
pessoa que foi, uma amabilidade desconcertante.
Ser
de esquerda, continuar a ser de esquerda, é sentir em cima dos ombros a
responsabilidade pelo mundo, não entrega-lo aos outros.
Nunca teve empregos de horários de seis horas por
dia para não enfrentar o drama de não arranjar tempo para escrever.
Não elogiava a preguiça mas também não a lamentava,
apenas a reconhecia. O tempo livre, não o ocupava – dispersava-o.
.
Mário Ventura pergunta-lhe:
-
Como? Com passatempos?
-
Não. É estranho, não sei bem explicar, é ocupado de facto a não fazer nada, nem
sequer ler. É ocupado…
-
Em contemplação?
- Pois. Não sei bem explicar, porque nem
sequer há contemplação. É ocupado a dispersar o tempo, a fazer coisas inúteis.
-
O que não parece fácil.
-
O que não é fácil. Mas eu suponho que tenho essa arte. Grande parte do meu
tempo, com efeito perde-se nos cafés.
-
E não tens a consciência do tempo perdido?
-
Tenho, sofro um bocado com isso. Mas também tenho uma certa consciência de que
só posso trabalhar perdendo tempo. Sou um indivíduo com pouca capacidade de
trabalho, canso-me rapidamente.
Legenda: fotografia de Joaquim Lobo na contracapa de
A
Cidade das Flores, Edições O Jornal.
O diálogo de Mário Ventura com Abelaira é tirado de Conversas,
Publicações Dom Quixote, Lisboa Novembro de 1986.
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