quinta-feira, 25 de outubro de 2018

DESFEITO EM NOSTALGIA


Aqui estou eu no meu quarto habitual, onde me parece ter estado sempre. Como tantas outras manhãs da minha vida, encontro-me em casa a escrever. Ressoa, vibrante a música Be My Baby, cantada pelas The Ronettes. Quando tinha dezasseis anos, era a minha canção favorita. De repente, ouço perfeitamente que alguém acaba de chegar ao patamar, no elevador. Mas ´estranho. Quem chegou não toca a nenhuma das quatro portas, nem se decide a abrir nenhuma delas. É como se tivesse ficado indeciso, aturdido ou simplesmente imóvel, ali. Vivo há tantos anos nesta casa, que controlo muito bem os sons que se possam ouvir perto da minha porta. Passam quase dois minutos até que, exactamente quando a canção termina, tocam à minha campainha. Abro. Vejo um homem, mais ou menos da minha idade. É o estafeta de uma editora e veio entregar-me um livro. Dá-mo e assino o papel. «As Ronettes…», sussurra o homem, melancólico. «Põem-me bem-disposto», comento sem me mostrar surpreendido – embora o esteja – poe ele conhecer The Ronettes. Sorrio, despeço-me, fecho a porta devagar, com a amabilidade habitual. Fico à escuta atrás da porta e noto que o homem não entra no elevador. É possível que tenha voltado a ficar imóvel no patamar. Seguramente, deixou-se ficar encostado a uma parede, quebrado, desfeito de nostalgia e até a chorar, à espera que volte a pôr-lhe Me My Baby.

Enrique Vila-Matas em Diário Volúvel



                                         

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