segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Ao longe, a morte acena a Sam Shepard e ele fica com o entendimento que os seus leitores, ele próprio, merecem um último olhar sobre tabernas de cidades de fronteira ou perdidas no meio do deserto, terras de apaches e saguaros, sonhos e desventuras, olhar o céu, senti-lo perto de si, adormecer e acordar ao som do cântico dos tordos, uma espécie de melancolia, deitado à espera que alguém o encontre, algo de muito seu que lhe faça companhia na última viagem.

«Há alturas em que não posso deixar de pensar no passado. Sei que o presente é o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes.»

Quem é que Sam espia?

Quem é que espia Sam?

Nem ele se lembra, ou sabe.

«Visto à distância. Isto é, a ver do outro lado da estrada, é difícil dizer qual a idade dele por causa do alpendre fechado com rede a toda a volta. Por causa dos óculos escuros a toda à volta. Roxos. O Mascarilha. Bandido mascarado. Não sei o que está a proteger. Está efectivamente dentro de um alpendre fechado, com insectos que zumbem, aves que chilreiam, todo o tipo de coisas estivais que vão ocorrendo, no exterior – borboletas, vespas, etc. -, mas é muito difícil dizer com exactidão a esta distância e a idade que tem. O boné de beisebol, as jeans encardidas, o colete velho.»

Sam Shepard começou a pensar no livro no ano de 2016.

Escreveu-o depois em rascunhos manuscritos já que a esclerose lateral amiotrófica que o atacou, impedia-o de dactilografar. Quando já não conseguia escrever à mão, passou a gravar os textos e os filhos faziam a transcrição para papel.

Patti Smith, amiga e antiga companheira apoiou-o na edição do manuscrito, quem mais o poderia fazer, ela que é uma eterna frequentadora de sombras, fragilidades várias, visões de cemitérios perdidos pelos mundos?

Sam fez a revisão do livro e ditou a versão final alguns dias antes de morrer, a 27 de Julho de 2017. Tinha 73 anos.

«A Lua está a ficar cada vez maior. A Lua dos Morangos (lua cheia do mês de Junho, Strawberry Moon, segundo nota do tradutor). Iluminando a nossa pequena trupe. A Lua Cheia. Dois filhos e o pai, com toda agente atrás. Seguindo pelo meio de East Water Street, e agora a noite está mesmo clara. A lua cheia. Conseguimos e coxeámos pelas escadas acima. Ou melhor, eu coxeei. Os meus filhos não coxearam, eu coxeei.»

Nas suas breves noventa e sete páginas, um livro desesperado mas um belíssimo livro.

Não sabemos o que pensar daquelas palavras dos seus últimos dias, não sabemos o que fazer quando fechamos o livro e o deixamos suspenso entre as mãos.

 «Aliás, já estou vazio. Do género de uma concha», escreveu Sam, no aproximar da página final quando sente que já não sabe como suportar a monotonia.

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