terça-feira, 30 de outubro de 2018

A PRIMEIRA VIRTUDE QUE SE PERDE


Chegamos ao fim do percorrer as páginas de O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Aqui o mar acaba e a terra principia, são as primeiras palavras, as últimas serão: Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.
Um brilhante começo, um não menos brilhante findar de um extraordinário romance.

Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim creio ter-lhe dito um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa choradeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou assim ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima. É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo. chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me. Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor da que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.

José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis

Legenda: Praça Duque de Terceira. Fotografia retirada do blogue Restos de Colecção.

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