quarta-feira, 10 de outubro de 2018

SARAMAGUEANDO



Poema A Boca Fechada

Não direi,
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei
Pois que a língua que falo é doutra raça.

Palavras consumidas se acumulam
Se represam, (cisterna de águas mortas),
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.

Não direi,
Que nem mesmo o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste silêncio em me não conhecem.

Nem só larvas se arrastam, nem só vermes,,
Nem só animais mortos boiam, quedos,
Lírios e rosas aos cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem medos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei,
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago em Os Poemas Possíveis


José Saramago considerava-se um poeta mediano.

Mas gosto da poesia de José Saramago.

Talvez por ter sido através deste seu livro que o descobri, talvez…

Aquela velha tarde na Livraria Portugal que já não existe.

« Estávamos em 1966, tinha então 21 anos, e não fazia a mínima ideia quem era José Saramago, tão pouco dele ouvira falar. Mas o livro que olhei fazia parte de uma colecção de prestígio: “Colecção Poetas de Hoje” da "Portugália Editora”.

Folheei o livro e do que fui vendo nascia um sentimento de gosto e prazer.

Houve tempo para passar os olhos pela “Fala do Velho do Restelo ao Astronauta”, mais dois, três poemas, mas a decisão foi apenas uma: estava com a minha gente.


Ainda hoje o livro tem o preço escrito a lápis pelo livreiro: 40 escudos.


E era daqueles que, gostosamente, se tinham de abrir com uma faca. O quanto lamentei quando os livros passaram a dispensar o exercício desse prazer, demorando os olhos pelas páginas que se iam revelando e até o livro estar aberto por completo. Só depois a leitura começaria.


Foi assim que começou a minha josésaramaguite aguda.


Feliz do leitor que, por si só, descobre um autor que desconhece, que sem qualquer tipo de ajuda passa a gostar de alguém que, ainda não saberá, um dia será Prémio Nobel da Literatura.


Se isto não é a felicidade, eu andei por lá perto!

Da nota que José Saramago entendeu escrever para a 2ª edição, 1992, de Os Poemas Possíveis:

«Poesia datada? Sem dúvida. Toda a criação cultural há-de ter logo a sua data, a que lhe é imposta pelo tempo que a produz. Mas outras datas leva sempre também, anteriores, as dos materiais herdados — quantas vezes importunamente dominantes —, e, de longe em longe, aquela impalpável data ainda pode vir, aquele sentir, aquele ver e experimentar só futuro ainda. Porém, essas entrevisões são coisa apenas para génios, e, obviamente, não é deles que se trata aqui.
Poesia do dia passado, da hora tarda, poesia não futurante. E contra isto não haveria remédio. Salvo tentar trazê-la até ao seu autor, hoje, por cima de dezasseis anos e dezasseis séculos. Assim foi feito, e esta edição aparece não só revista, mas emendada também. Quase tudo nela é dito de maneira diferente, diferente é muito do que por outra maneira se diz, e não faltaram ocasiões para contrariar radicalmente o que antes fora escrito. Mas nenhum poema foi retirado, nenhum acrescentado.
É então outro!»     

Legenda: capa de Os Poemas Possíveis publicado pela Porto Editora.
A caligrafia da capa é da autoria do escritor Almeida Faria.

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