segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

OLHAR AS CAPAS


Léah

José Rodrigues Miguéis
Capa: Bernardo Marques
Colecção Latitude nº 24
Estúdios Cor, Lisboa, Fevereiro de 1958

Olho cá de cima esta Avenida, que foi pacata e alheia ao mundo, e quase nem a reconheço. Se quer que lhe diga, chego a ter saudades. Antigamente havia uma 79 honestidade quase dolorosa em tudo isto, um recato nas aparências. Isto era provinciano mas sincero. Entrou aqui um fungo misterioso. Muita cara nova, outros costumes, quartos de aluguel, casas suspeitas. Mães de família com meias de nylon que saem sozinhas à tarde e só voltam altas horas, ou de madrugada, de táxi... Uma encruzilhada da desintegração. Já nem gosto de olhar. Enoja-me este ersatz barato de babilônia, esta sucursal da Baixa em dó- mesquinho. Agora os mortos vão a gasolina, sem mais ajuda de Chopin; não há cortejos, nem desfiles, nem charangas animadoras. Os Santos Populares, oficializados, tornaram-se estranhos, esquecidos. Até o luar parece outro, distante. As noites abafam, acabou-se a brisa das hortas, repelidas pelo cimento das novas construções. Obras, obras! Há quem goste disto, e até quem lhe chame Progresso. Sobe da rua um estrondo odioso, os cafés ali da Praça sempre cheios de gente pasmada a ler da bola. Ouvem-se latir altos-falantes. A cervejaria, acolá, extravasa cascas de amendoim, de tremoços, restos de mariscos, sempre cheia de gentalha, patos-bravos que só falam de negócios, traficâncias, fêmeas de comprar e vender. Onde estão os pregões, os descantes, as guitarradas, os amores, os alarmes, a inocência, a poeira de outrora? Onde estamos nós mesmos? Sim, por baixo deste manga d’alpaca promovido e desiludido, onde estou eu? Para não me perder de mim mesmo, nem perder pé na vida, ainda de vez em quando ergo o canto da cortina, e fico a olhar o que para mim, para os da velha-guarda cá do sítio (que poucos restam), foi e há de ser a Casa da Dona Genciana.


(Do conto Saudades para a Dona Genciana)

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