domingo, 10 de janeiro de 2021

OS DOMINGOS DE NAMBUANGONGO


Dizia o Manuel da Fonseca que «quando chega domingo faz tenção de todas as coisas mais belas que um pode fazer na vida», Armando da Silva Carvalho «domingo é um bom dia para se olhar a tristeza, o ar anda devagar por essas ruas desertas», António Reis «é domingo hoje mas nós não saímos é o único dia que não repetimos e que dura menos», Alexandre O’Neill «os domingos de Lisboa são domingos terríveis de passar – e eu que o diga». Eugénio de Andrade «o domingo está apenas nos meus olhos e é grande.»

Na minha infância aguardava a chegada dos domingos para ir às matinées do Cine-Oriente, o jantar era melhorado, nem sempre, mas a minha avó fazia uma galinha no forno que nunca mais voltei a comer, aos domingos na Vila Gadanho os homens sentavam-se à porta a ouvir o relato nos rádios de pilhas.

Há domingos assim, dizia o Ruy Belo.

Herberto Helder, que nos anos 70 vivia em Luanda, escreveu crónicas e reportagens para o semanário Notícia. Alguns desses escritos estão reunidos em minúsculas, livro publicado em 2018.

Numa dessas crónicas fala de domingos, «que é um dia chato» os domingos de Nambuangongo, vila, se assim se pode dizer, a menos de 200 quilómetros de Luanda, uma distãncia que as colunas militares, partindo da capital,  demoravam mais de três meses a percorrer, um local que se pode descrever assim: «barracões pré-fabrivadios para alojamento da tropa, quatro habitações, duas casas de comércio, uma igreja, e um campo de futebol improvisado. Uma pista para aviões (térrea), que é também estrada de acesso. E pó, claro - quero dizer: pó escuro. Os militares gracejam: "Quando escarramos, saem tijolos."»

Herberto conta que há vários domingos, um domingo arrefece em Amesterdão e aquece em Nova Iorque  e «trata-se do mesmo domingo». «Um flagelo.»

Lembra ainda que os domingos de Paris têm pombos no Jardim de Luxemburgo, os de Bruxelas arrastam-se pelas cervejarias mas as pessoas aborrecem-se.

«No respeitante aos domingos de Nambuangongo, têm eles uma particularidade: não existem. Eu, pelo menos, andei à procura e não encontrei nenhum. Em abono dos domingos, devo elucidar que também não me foi possível encontrar nenhum sábado, ou sexta-feira, ou quinta, etc. Um extenso dia sem nome, inconsútil e indistinto, faz o tempo de Nambuangongo.

(…)

Um dos aspectos característicos de Nambuangongo é ser um lugar masculino. Não há mulheres. Também, e consequentemente, não existem crianças.

(…)

Não haver mulheres e crianças é (digamos) inquietante. Dá ao lugar uma atmosfera parada, morta. Destitui-o daquela espécie de delicadeza difusa, e alegria sem razão, que aparecem com o elemento feminino e infantil.

Além dos civis solteiros, há os militares. Que se faz num quartel de onde não se pode sair para fazer qualquer coisa fora do quartel? Não existe lugar para onde. Não se pode sair? Pode. Eles saem para a mata em operações. A guerra é, portanto uma ocupação. Po r acaso, um grupo de homens, com alguns dos quais estive a beber e a conversar até tarde na noite, foi opassar o domingo à guerra.»

O poeta Fernando Assis Pacheco esteve nessa guerra, disse ele que a guerra pode passar, mas aquela guerra entrou-lhe para os ossos e não sai.

«Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.

Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.

Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.

Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.»

O poeta Manuel Alegre também por lá andou, em Nambuangongo, onde não há domingos, nem mulheres, nem crianças, mas algo de mais terrível e, por isso, ele nos diz que não vimos nada em Nambuangongo.

«Em Nambuangongo tu não viste nada

não viste nada nesse dia longo longo

a cabeça cortada

e a flor bombardeada

não tu não viste nada em Nambuangongo.

 

Falavas de Hiroxima tu que nunca viste

em cada homem um morto que não morre.

Sim nós sabemos Hiroxima é triste

mas ouve em Nambuangongo existe

em cada homem um rio que não corre.

 

Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto

em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece

em Nambuangongo olhei e fiquei nu. Tu

não sabes mas eu digo-te: dói muito.

Em Nambuangongo há gente que apodrece.

 

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta

cada carta é um adeus em cada carta se morre

cada carta é um silêncio e uma revolta.

Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.

E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.


É justo que me fales de Hiroxima.

Porém tu nada sabes deste tempo longo longo

tempo exactamente em cima

do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima

com a palavra morte em Nambuangongo.»

Oitocentos mil jovens foram mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique: 11 mil mortos, 40 mil estropiados e deficientes, 140 mil antigos combatentes passaram a sofrer de “stress” de guerra. Sabemos destes números – serão mais? Serão menos? Mas como diz João Paulo Guerra no seu livro Memórias da Guerra Colonial, «não há estatísticas para a solidão, a ansiedade, o medo, o sofrimento, a dor». Há feridas que custam a cicatrizar mas não é o silêncio o melhor remédio. Uma guerra sem sentido, estúpida e inútil. E ninguém perguntou àqueles jovens se queriam ou não participar naquela guerra.
Adeus até ao meu regresso.

De novo, o poeta Herberto Helder:

«Amanhã parto para Luanda, daqui a não sei quantos dias encontrar-me-ei não sei onde. A movimentação da minha vida é ao contrário da imobilidade de Nambuangongo. Quase me tenho por culpado. Mas a minha consciência ganha vantagem à consci~encia dos outros, com sorte bastante para se aborrecerem dominicalmente em sítios e circunstâncias «ferviscosos» É que eu conheço Nambuangongo e os homens de lá – habitantes de um símbolo, de uma significação. Domingos chatos, os deles, mas muito mais importantes que uma quantidade de domingos que andam para aí.»

Hoje, que é domingo, e faz um frio de rachar, consultando a Wikipédia, ficamos a saber que «Nambuangongo é um município da província do Bengo, em Angola, com sede na vila de Muxaluando. Em 2014, tinha 61.024 habitantes. É limitado a norte pelo município de Ambuíla, a este pelo município de Quitexe, a sul pelo município dos Dembos e a oeste pelos municípios de Ambriz e Dande.»

Naquele terrível tempo, Fernando Assis Pacheco deixou escrito que as bombas explodiam na mesa de cabeceira, «onde estive, o capim passava do ombro, a morte passava, e a melancolia.»

E Herberto Helder, nesta crónica do semanário Notícia que temos vindo a ler, deixa desenhado que Nambuangongo «funcionará antes como um significado do que como um lugar, ou mesmo um facto.»

Mas Fernando Assis Pacheco,no agora em que via descer a noite da sua vida, Outubro de 1994, desversando, é muito claro:

«Trinta anos depois continuo revoltadíssimo

V.ª Ex.ª foi de uma grande falta de chá

nem eu precisava de Angola – nunca!

nem Angola de mim – o que hoje parece claro

 

V.ª Ex.ª argumentava nos corredores

que eram ordens do dr. Salazar

ora adeus mandasse-o mas é a ele

tinha bom corpo para apanhar porrada

 

e mesmo V.ª Ex.ª podia ter feito

uma perninha como eu fiz em Zala

não sou de rancores nem pouco mais ou menos

mas aquela merda estava mal parada

 

sabe V.ª Ex.ª o pasmo e a aflição

quando se caía em alguma emboscada?

umas vezes olhava pelo rabo do olho

outras fingia de morto e mijava-me

 

depois voltava-se ao acampamento

para a ternura dos cães e a tarimba rasa

um duche ao ar livre um cigarro infeliz

o gole de cerveja a atirar para o amargo

 

houve um fim de dia entre todos cinzento

que eu me senti o maior dos miseráveis

funesta ideia – e fui a correr esconder

a arma de serviço por sinal uma Walther

 

a esta hora já enterraram V.ª Ex.ª

com as competentes honras militares

mas a verdade é sempre para se dizer

trinta anos passados não me esqueço de nada»

 

Legenda: povoação de Nambuangongo retirada  de Guerra Colonial: Fotobiografia de Renato Monteiro e Luís Farinha.

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