segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

UM HOMEM NA CIDADE

 


A idade traz-nos tiques esquisitos. 

Todos os dias sento-me ao computador para olhar as notícias e ver se os de quem gosto ainda continuam por cá.

No dia em que fez oitenta e cinco anos, António Gedeão escreveu nas suas Memórias:

«Eu todos os dias leio a necrologia no Diário de Notícias e verifico a insistência com que se acentua a presença dos falecidos na casa dos oitenta anos e até na dos noventa, o que é uma novidade dos tempos recentes.

Foi no primeiro dia deste ano, que deverá ser tão mau – pior?! – como o há dias findo, que ficámos a saber que os deuses quiseram levar-nos o Carlos do Carmo.

Um viajante deste blogue deixou um comentário para registar o que um dia José Saramago disse de Carlos do Carmo»

«Há sempre alguma coisa de profundamente elegante no Carlos do Carmo, uma elegância que não é só física, é também moral.»

Maria do Rosário Pedreira chamou-lhe uma voz de estimação e conta como, menina ainda, o ficou a conhecer:

«No Portugal cinzento da minha infância, havia muitos pais severos, autoritários e distantes; mas, na roda da sorte que é a vida de cada um, calhou-me graças a Deus uma família liberal que apreciava a noite e a boémia. A minha mãe adorava arranjar-se e sair e o meu pai era suficientemente doido para arrastar consigo os filhos pequenos para as casas de fado, nomeadamente O Faia, da grande Lucília do Carmo, de quem era amigo. Tenho ainda fotografias desse tempo, com franja e vestidos de gola engomada, sentada com seis ou sete anos entre fadistas e guitarristas que eu fazia rir com macaquices próprias da idade e me davam sobremesas deliciosas às escondidas.

Foi assim que comecei a ouvir Carlos do Carmo, essa voz inconfundível que se se impunha por ser tão única e tão diferente de tudo o que até então se ouvira. Carlos do Carmo e o Faia foram, pois, fundamentais na minha educação musical – e o meu amor ao fado vem desse tempo.»

Carlos do Carmo tem interpretações únicas de canções lindíssimas, deixou-nos um disco fabuloso, Um Homem na Cidade, gostava de Sinatra e de Brel.

O governo decretou um dia de luto nacional.

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