terça-feira, 5 de janeiro de 2021

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...

 

Sempre foi um leitor atrasado, principalmente de jornais e revistas.

Coloca-os numa cesto de vindima que tem ali ao canto, e depois vai pegando neles.

Terá sido em Novembro, numa ida à Livraria Bertrand, que trouxe de lá a revista Somos Livros.

Só ontem lhe pegou.

A págs,. 54, a revista invoca Louise Gluck, dizem eles «a voz poética inconfundível de Louise Gluck» e publicam um poema seu, retirado da antologia Rosa do Mundo.

Acontece, porém que o poema que publicam, é da autoria de José Saramago do livro Provàvelmente Alegria.  

Todos nos enganamos, todos erramos, o Samuel Becket exige que se tente de novo, que se falhe de novo, que se falhe melhor.

Certamente a revista já não estará nos escaparates das livrarias Bertrand, gratuita a sua distribuição, muitos que a levaram terão aproveitado, lembrando João César Monteiro, para embrulhar peixe frito, ou, acrescento eu, para as necessidades caseiras de algum cão, algum gato, pelo que não vale a pena escrever para a redacção da revista a contar do erro.

Apenas aproveito a deixa para publicar a poesia de Louise Luck que vem na página 1806 da antologia Rosado Mundo e a poesia de José Saramago.

E ficamos bem, neste dia frio de não sei quantos graus, com avisos da Protecção Civil à população por causa da friagem.

O PODER DE CIRCE

Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,

sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,
 

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter

podia ter-te aprisionado.

Louise Gluck, tradução de José Alberto Oliveira na antologia Rosa do Mundo


Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
      manhãs e madrugadas em que não precisamos de
      morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
     em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
     palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
     mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno,

     a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz

      e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda
     do mundo infatigável, porque mordeu a alma
     até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem mila-

     gres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

José Saramago em Provàvelmente Alegria

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