quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

OLHAR AS CAPAS


Ilha do Desterro

Alexandre Pinheiro Torres

Capa: João da Câmara Leme

Colecção Poetas de Hoje nº 29

Portugália Editora. Lisboa, Outubro de 1968


Fala com o Mar pelo nascer do dia


Venho olhar a tua quinta-feira

que é esta longa seara

de pedra. E vejo ainda

desarmada a mão avara

 

que vai disparar a bala

rente ao úvido da Manhã.

A luz da aurora é a fala

duma língua temporã

 

que primeiro nada lavra

e é uma charrua de tábua,

mas quando se faz palavra

é um pomar a tua água.

 

Chego-me para olhar a quinta

como se olhá-la adubasse

essa terra tão faminta

da clareza da sintaxe.

 

Vê agora a tua mesa

se é que a luz ainda por vir

te deixa ver a portuguesa

maneira de a servir.

 

O que nela se nos dá

sobre a ausência da toalha

é a pedra que aqui há

como única vitualha.

 

E a mão deflagra o gatilho

secreto do amanhecer.

As palavras são o rastilho

do lume que vai nascer

 

troando ao ouvido que ensurdece

o urgentíssimo arcabuz

que da noite lenta tece

uma bengala de luz.

 

Alexandre Pinheiro Torres em Ilha do Desterro

AO ANTÓNIO RAMOS ROSA

Folha que escuta o vento    o som do muro

erguido ao sol da erva    nuvem clara

feita o instante verde    a pedra rara

sobre o anel do tempo e do futuro.


Boca do ar   espuma das palavras

na janela do fogo    abelha dura

voando sobre os beijos    mão que lavras

na polpa das cerejas a mais pura


morte que se escreve com a mágoa

do medo sobre o rosto    a longa asa

rasando os lábios soltos pela água

de quem faz com versos uma casa.

 

Joaquim Pessoa em Poemas de Perfil em Paiol de Pólvora

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


O silêncio é a mais perfeita expressão do desprezo.

George Bernard Shaw

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO


Há dias, neste Cais, poderia encontrar-se o lamento de que as livrarias vão desaparecendo por Lisboa, também a ideia de fazer um roteiro de algumas livrarias, quando as havia.

Porém na Internet podemos ir encontrando sites que vendem livros.

Um bem interessante e de confiança é a Frenesi Loja:

Mais de 5.500 obras disponíveis no catálogo.

Vou lá regularmente e hoje copio as referências que a Frenesi faz ao livro que reúne as peças de teatro A Guerra Santa e A Estátua:

«Livro apreendido pela polícia política do Estado Novo em circunstâncias particularmente vergonhosas, dando origem ao encerramento da casa editora, que, depois de ver as instalações seladas, acabou com as caves-armazém criminosamente inundadas. Sttau Monteiro será preso, paga do regime pela sátira à ditadura e à guerra colonial. A imprensa, a 7 de Dezembro de 1966, transcreveu o comunicado do governo com a versão oficial para o referido “encerramento”:

«Do S. N. I. recebemos a seguinte informação:

“Foi mandada aplicar á Editorial Minotauro a pena de encerramento definitivo, prevista no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 33015, de 30 de Agosto de 1943.

Esta pena foi aplicada àquela empresa por ter editado um volume com graves implicações prejudiciais á defesa dos fins superiores do Estado e nomeadamente ofensivo do prestígio das Forças Armadas, que neste momento se batem, numa guerra que nos é imposta, em defesa da integridade nacional.”».

1.

«Resumindo e concluindo: Portugal é mesmo um país especial e indescritível, dos poucos onde dois partidos gémeos, o PS e o PSD, governam à vez e fingem odiar-se, apesar de frequentarem os mesmos restaurantes, as mesmas igrejas, as mesmas organizações secretas, as mesmas praias, e terem entre os seus quadros todo o tipo de gente, desde corruptos a ladrões, malucos, pervertidos, bêbados, esotéricos e desavergonhados. E imagino que seja assim na Iniciativa Liberal, no Livre, no PAN, no PCP… No jornalismo é a mesma coisa: há de tudo, como na farmácia.»

Pedro Garcias de uma crónica no «Público» de 14 de Fevereiro de 2025

2.

No final de Janeiro deste ano, mais de 1,5 milhões de utentes continuavam sem ter um médico de família atribuído. Um número em linha com os valores registados no final do ano passado e com os de final de Março desse ano - o Governo tomou posse a 2 de Abril. Na altura, o objectivo enunciado pelo executivo é dar uma resposta de saúde familiar a todos os portugueses até ao final deste ano.

3.

No dia em que Carlos Paredes nasceu há 100 anos, o Público publicou um excelente trabalho sobre o príncipe da guitarra portuguesa designado por Três Músicos escrevem sobre Carlos Paredes:

Um leitor deixou este comentário:

«Parabéns ao jornal Público, pelo serviço cívico, cultural e artístico, que presta, ao dedicar espaço, tempo e esforço a divulgar o legado de Carlos Paredes. Permito-me, com a devida vénia, complementar o testemunho de Manuel Fúria, com algumas ideias, que espero serem úteis para o debate, que se pretende plural e tudo menos unânime, consensual e, por isso, vazio de substância. Vinte anos depois da morte de Paredes (em 2004), num mundo em que a política dita um rosário de casos de corrupção, de escândalos éticos, económicos, de guerra selvagem e de gente desiquilibrada e megalómana (Trump e Musk são apenas os mais evidentes), relembrar o legado, a simples existência, de um homem simples, humilde, generoso e elegante como Paredes constitui um bálsamo para a alma. Haja esperança e alegria.»

4.

59% dos professores já se sentiram vítimas de bullying e 10% dos professores dizem já ter sofrido agressões físicas, principalmente de alunos, mas também de pais.

 5.

Nas empresas de restauração e similares os imigrantes são já mais de 30% do total de trabalhadores.

6.

Um em cada cinco portugueses reforma-se antecipadamente e em 2024 verificaram-se cinco despedimentos de grávidas por dia, um significativo aumento face a anos anteriores.

OLHAR AS CAPAS


 Notas para a História do Socialismo em Portugal

(1871-1910)

Prefácio: Victor de Sá

Capa: João da Câmara Leme

Colecção Portugália nº 11

Portugália Editora, Lisboa, Agosto de 1964

Ora depreende-se das palavras de Jaime Batalha Reis, testemunha comparticipante destes factos, que só ele, José Fontana, Antero de Quental e os três emissários da Associação Internacional dos Trabalhadores é que tomaram parte nas conferências realizadas a bordo dum barco no Tejo, o que está em oposição com a afirmação de Nobre França quando diz que às «conferências dos três espanhóis com Fontana e Antero de Quental (que veio conduzido por Fontana) assistiram mais dois ou três moços, eventualmente, que não pude averiguar com certeza quais foram«.

Parece-nos, portanto, que o mais certo e real deverão ser as «recordações» de Jaime Batalha Reis, pois foi o remador do barco e um dos assistentes às conferências no Tejo.

VELHOS RECORTES


 

A Abril em Maio foi uma das muitas actividades que Eduarda Dionísio desenvolveu, ao longo da sua vida, no campo cultural. A Eduarda Dionísio deixou-nos em Maio de 2023 e como último grande trabalho deixou-nos a Casa da Achada onde se encontra o espólio, devidamente tratado e catalogado, de seu pai, o pintor e escritor Mário Dionísio.

A Wikipédia diz-nos o que foi a Abril em Maio:

«A Abril em Maio é uma associação cultural fundada em 1994, por ocasião dos vinte anos do 25 de Abril. Materializou, ao longo destes anos (1994-2005), um projecto singular de associativismo e de intervenção cultural que se inspirou na memória do movimento popular que marcou a revolução (em especial na sua dimensão emancipatória), tendo vindo a afirmar-se desde a sua fundação como uma alternativa às lógicas culturais de mercado. Daí que na declaração de princípios desta associação se leia: "À Abril em Maio não interessa o cultural em que a cultura se transformou, mas a cultura enquanto conjunto de saberes, de saberes-fazer e de saberes-viver, fundado numa prática colectiva em que os indivíduos e os grupos são actores da sua própria existência. À Abril em Maio interessam, sim, os produtos culturais (e muitos deles são arte) que, pelo modo como são produzidos e reproduzidos e o valor de uso que podem ter, resistem à instrumentalização política e económica. Aqueles que, de uma maneira ou de outra veiculem ideais de solidariedade e cooperação, visando a transformação, e que combatam o autoritarismo, a ideologia competitiva, o discurso dominante e os ditames do mercado. À Abril em Maio interessa o trabalho dos intelectuais e dos artistas que, em vez de aceitarem, aprovarem e aplaudirem a ordem estabelecida, a contestam, a criticam e tentam combatê-la.»

Estes dois velhos recortes são textos de José Duarte e Manuel Gusmão pedindo desculpas por não conseguirem mais colaboração para a Abril em Maio. Creio que também existe um texto do Vitor Silva Tavares sobre os mesmo pedido de colaboração da Eduarda, mas, apesar de voltas e mais voltas, não o encontro.

INTERIOR

É bom ouvir de noite uma trompa de caça

Despir muito depressa a túnica da Lua

E descobrir o amor no forro de uma casa

onde apenas vibrava a memória da chuva

 

Depois de arrebatar o corpo da amada

ao ritmo infernal de um batuque de guerra

é bom permanecer na mesa de montagem

misturando Anfião  Vivaldi  Apollinaire

 

É bom lançar ao fogo um velho dicionário

É bom o crepitar das palavras antigas

Adivinhar quais são as que por fim renascem

e que sabem voar ao saírem das cinzas

 

É bom pedir perdão ao som de uma sonata

Segredar num soneto a ária do remorso

É bom recomeçar com música de jazz

Vestir sem ninguém ver a túnica de Apolo

 

David Mourão-Ferreira de Do Tempo ao Coração em Obra Poética

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

CRONICANDO POR AÍ

«Compreendo o silêncio de Benfica e Sporting perante a morte de Pinto da Costa. Ensaiei na minha cabeça várias reações oficiais, e todas tinham o mesmo problema. As palavras queimam e perseguem-nos quando são mal escolhidas. Seria estranho resumir a duas linhas de circunstância uma reação quando há tanto por dizer, se quisermos ser sinceros. Uma instituição deve representar os seus membros, e seria difícil, provavelmente inadequado, ser uma extensão do que estes pensam no momento atual.

É complicado encontrar algo estruturalmente positivo para dizer acerca de Pinto da Costa, alguém que, com ocasional elegância, irónica souplesse e a tal cultura acima da média que o tornou uma referência entre filisteus, fez do ódio aos rivais uma figura de estilo amplamente apreciada. Tanto que produziu efeito como cultura e forma de estar. Tanto que foi copiada por outros dirigentes, inclusive no meu clube.

Já aqui escrevi que o ex-presidente do FC Porto inventou um clube, mas aquilo que fez, e sobretudo o modo como o fez, alastrou-se em forma de doença. Mais do que uma identidade clubística, a cultura materializada por Pinto da Costa tornou-se um padrão a seguir, a forma correta de fazer as coisas. Essa foi a sua maior conquista enquanto protagonista. Quantas vezes ouvi pessoas justificarem práticas dúbias no futebol com expressões como «as coisas têm de ser assim», «não podemos ser anjinhos», porque, se assim for, «vamos ser comidos», recorrendo às palavras históricas de José Maria Pedroto. O futebol português permitiu que se consensualizasse a ideia de que os «bons rapazes» são comidos e que só os maus ganham. Patrocinou uma nova era de competições em que essas eram as regras do jogo.

Posso recuar até à minha infância. Não me lembro de outro futebol competitivo em Portugal. O que hoje acontece assenta na seguinte dialética: as vitórias dentro de campo nunca são apenas isso. Desde que me recordo, assisto a uma engrenagem imparável de operações nos bastidores, negociatas estranhas, nomeações inexplicáveis, decisões escandalosas, personagens sinistras, critérios desiguais e, no final de tudo, uma série de platitudes proferidas pelas lideranças sobre um desporto aparentemente imaculado. Porque toda a gente tem contas para pagar, a vida continua e o povo mantém-se interessado. O povo, aliás, abraçou tudo isto como parte da diversão.

Criou-se uma nova camada de entretenimento em torno da trama, com muitos vilões, todas as suspeitas e nenhum culpado. Se o termo «verdade desportiva» ganhou relevância, é porque muitos precisaram dele para expor as mentiras em que o futebol português labora, e também porque tudo isto se tornou parte de uma discussão, o mal a combater enquanto parte de uma sociedade do espectáculo. A distinção entre licitude e ilicitude perdeu-se pelo caminho. O que sobra é uma construção social aceite por todos, onde a esperteza e a manha são tão importantes quanto o atleticismo e a vontade de competir.

Eu vejo um legado indissociável de Pinto da Costa e uma herança deixada a todos os que não o aplaudiram com fervor religioso: um futebol em que quase ninguém aceita o resultado final de um jogo, um desporto seguido apaixonadamente por milhões, mas no qual poucos acreditam piamente no que veem. Por muito que se elogie esta indústria pelos seus proveitos financeiros e desportivos, por muito que se reconheça que o desporto cumpre uma função social importante alheia à sua faceta mais pantanosa, o lugar em que o futebol nacional se instalou ao longo dos anos, naquilo que tem de mais doentio e antidesportivo, deve muito a Pinto da Costa. Foi ele quem demonstrou que era possível recorrer a quaisquer meios para atingir os fins pretendidos. Está para chegar o dia em que me sinto convencido de que essa cultura foi absolutamente erradicada do desporto e das principais esferas de decisão.

É natural que muita gente se sinta obrigada a dizer algo mais simpático neste momento. Aqui chegados, depois de tudo o que vimos ou deixámos acontecer com um piscar de olho maroto ou com um assobio para o lado, será mesmo altura de falar a verdade? Mais vale deixar ficar como está. Já passou. Esse foi um enorme mérito de Pinto da Costa: trabalhou nos corredores mais sombrios para vencer vezes suficientes. Fê-lo até conseguir cristalizar como verdadeiro e lícito, até admirável, aquele que foi o seu percurso no desporto. Por isso, se as últimas 72 horas nos mostraram algo, é que os adeptos de um clube não estão prontos para falar abertamente sobre o que se passou ao longo das últimas décadas. Arrisco dizer que nada mudará nesse capítulo, porque, muito antes de clamarmos pela verdade desportiva, já o então presidente do FC Porto mostrava o seu engenho na prática da pós-verdade.

Hoje, parece não ter havido escuta que o desmentisse, da mesma forma que não parece haver pessoa capaz de convencer outra de que uma coisa azul é amarela ou de que a Terra é mesmo redonda. Para o que der e viver, o futebol continuará a ser, depois de Pinto da Costa, um ajuntamento de terraplanistas: uns porque negam o amplo corpo de evidências, outros porque a vida lhes continuará a dar motivos para desconfiar. Talvez seja só isso e não valha a pena aspirar a mais.

Eu percebo. Se um presidente do meu clube vivesse até aos 87 anos e, no entretanto, me tivesse permitido celebrar a conquista de duas Taças dos Campeões Europeus e duas Taças UEFA, eu também estaria grato e tenderia a ignorar o resto. Assim se explica que, após uma eleição que viu Pinto da Costa ser derrotado sem apelo nem agravo, o FC Porto apareça aos olhos do comum adepto de outro clube como uma entidade em profunda angústia existencial. Pudera. O presidente que inventou tudo isto deitou fora o manual. Um clube que durante 40 anos fez da corrupção, das agressões, do ódio aos «vermes que merecem desprezo», da intimidação e da violência, dimensões não escritas da sua identidade. Conseguiu até que tudo isto se tornasse socialmente aceite, uma espécie de mal necessário, uma excentricidade em forma de clube de futebol com a qual tínhamos todos que aprender a viver.

Compreendam por isso o silêncio oficial, sem elogios nem críticas. Compreendam também que os demais adeptos ou as instituições que os representam não sintam o mesmo carinho por esta pessoa que agora nos deixa. O respeito institucional pelo qual tantos clamam hoje não encontrou reciprocidade nos últimos 40 anos. Compreendam que os adeptos questionem as conquistas de um clube ou de um presidente quando estas foram manchadas por décadas de práticas antidesportivas. Compreendam que esses adeptos jamais venham a considerar imaculada uma herança deixada nestes termos.

Pinto da Costa fez tudo o que estava ao seu alcance para ser a melhor coisa que aconteceu aos portistas. Não tenho dúvidas de que conseguiu. No processo, tornou-se a pior coisa que aconteceu ao futebol português. Parece-me que viveu sempre bem com esta minha opinião. Paz à sua alma.»

Vasco Mendonça em A Bola de 18 de Fevereiro de 2025

CONVERSANDO

Há livros que não li.

Deveria ter lido?

Seja como for, vou sobrevivendo…

OLHAR AS CAPAS


Tudo Sobre Intersindical e Carta Aberta

Coordenação: António Serzedelo

Prefácio: César de Oliveira

Cadernos Aqui nº 1

Editorail Aqui, Lisboa s/d

Em suma, é muito importante que a nova estrutura sindical assegure a democraticidade interna, as condições de discussão e de afirmação das várias correntes e opiniões do movimento sindical, para que todas elas possam conviver e articular-se no seu seio, para melhor travar essa luta de morte entre o capital e o trabalho.

OLHARES

«…penso que a melhor fotografia de guerra que alguma vez se tirou e mostra apenas um soldado a beber de um canil. A banalização do horror horroriza-me.

Alexandre O’ Neill em Diz-lhe Que Estás Ocupado 

Legenda: fotografia de Eugene Smith

MÚSICA PELA MANHÃ

Sempre considerou os preços dos bilhetes dos concertos uma exorbitância.

Também nunca se habituou a ouvir música com gente ao lado que, por tudo e por nada, desata numa gritaria que ultrapassa largamente o limiar da histeria.

Chegou a pensar que grande parte dessa gente vai a concertos não por causa dos artistas, por causa da música, mas por algo que, necessariamente, nada tem a ver com os artistas e música.

Como tem vagos problemas de surdez, todo aquele chinfrim de berros e assobios, causa-lhe algum incómodo.

Mas os filhos encostaram-no à parede, compraram bilhete e seria basto ordinário se recusasse ir ver os Dire Staits a Alvalade.

Mark Knopfler e a sua banda andavam desde 1991 em tournée mundial que terminaria em 1993.

Pouco tempo faltava para que Mark Knopfler dissesse, aos restantes companheiros, que já estava um pouco farto daquela vida, que se queria dedicar, de alma e coração, a fazer bandas sonoras e outros projectos. Com serenidade fecharam os taipais em 1995 mas, como tantos outros, talvez se voltem a reunir.

Fizeram o trabalhinho com competência mas nada de entusiasmante. Dois ou três “encores”, o inevitável “Local Hero”, e foram-se ao resto da vidinha que, dizem, são dois dias.

Sentiu-se um tanto ou quanto defraudado. Acresce que a noite era uma daquelas que a Primavera lisboeta, por vezes, tem: sufocantes. E os bares do velho Estádio de Alvalade vendiam a cerveja quente. E se há coisa que o deixa mesmo fora de si, a perder por completo as estribeiras, é darem-lhe cerveja quente.

Arranjou mais uma razão para não gostar de ir a concertos.

Os amigos consideram-no um chato!...


A FERNANDO PESSOA (ELE MESMO)

Cada verso é uma esfinge ter falado.
Mas quanto mais explícito ela o diz,
Mais tudo permanece inexplicado
E menos se apreende o que ela quis.

Erra um sussurro, tão etéreo e alado
Que nem mesmo silêncio o contradiz.
E o ouvi-lo, ou ávido ou irado
Na busca dum segredo sem raiz,

É como se em pensar - um descampado -
Passasse fugitiva e intensamente
O Tempo todo inteiro projectado

E a sombra ali marcasse, na corrente
Do nada para o nada, inda passado
E já futuro, a ficção do presente.

Reinaldo Ferreira em Poemas

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO


Ter saudades do passado é como correr atrás do vento.

Provérbio russo

TRUMPALHADAS

Perguntava-se no Público:

«Depois da “traição” de Trump, o que pode a Europa fazer? Líderes procuram respostas em Paris»

 Com as calças na mão atirada, para debaixo do tapete pelos Estados Unidos nas negociações para encontrar uma solução para a guerra na Ucrânia, a Europa encontra-se em Paris numa emergência, conversações de consulta, diz a diplomacia, para discutirem, um restricto número de dirigentes, Rangel não foi convidado!..., não se bem o quê

José Pacheco Pereira já avisara:

Com que então Trump não ia fazer o que dizia que ia fazer?

«Este era o argumento dos minimizadores de Trump que, ou com manifestações de simpatia envergonhada ou alta ciência académica, diziam que não havia preocupações com Trump, porque aquilo que ele dizia era retórica eleitoral e, quando chegasse lá, seria “moderado”, até porque estava mais preparado do que em 2016 e tinha uma equipa.

Temos por cá vários minimizadores da coisa, embora alguns sejam apenas minimizadores porque têm vergonha de serem “trumpistas”, mas, no fundo, gostam do que ele está a fazer. O grupo mais numeroso é o dos que ficam felizes com a vitória de Trump porque ele amesquinhou e humilhou a esquerda, da esquerda moderada aos radicais woke. Há quem também ache que ele está a fazer o que eles gostariam de fazer, a despedir funcionários públicos, a cortar despesas a eito, a acabar com programas sociais. São os “liberais” de hoje, que gostariam de ter um Elon Musk a mandar, à falta de um Milei. E são os nacionalistas do Chega, que são antiglobalistas e antieuropeus e querem a perseguição dos muçulmanos e dos imigrantes “monhés”. E várias variantes de reaccionários, desde os integristas religiosos aos pais que acham que as escolas depravam as suas crianças com ideias perigosas sobre o sexo. E, por fim, os pró-russos, comunistas e outros, gostam de Trump, e não é pouco, e querem ver a Ucrânia derrotada em toda a linha.»

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO


«Trump tirou a limpeza étnica do armário mal chegou à Casa Branca, e Israel está com ele. Não só Netanyahu, os seus avatares de extrema-direita e o espectro partidário em geral, mas também dois terços ou mais dos israelitas. É o que dizem as sondagens depois de o Presidente dos EUA anunciar uma “Riviera do Médio Oriente”, com a remoção dos palestinianos de Gaza para sempre.
Dois em cada três israelitas abraçam a limpeza étnica. Pelo menos. Que fará a Europa?
Na pesquisa do Canal 12 da TV israelita, 69% dos cidadãos apoiam o plano (apenas 18% se opõem a ele, 13% estão indecisos). Na pesquisa do Canal 13, o apoio é de 72%. Na pesquisa do Canal 14, sobe para 76%. Não há notícia de políticos israelitas se oporem. Até entre opositores do governo, o “plano” de Trump foi descrito como “interessante” ou “fora da caixa”. Esbarrei no título de um deputado (do Likud de Netanyahu) que seria contra realojar os palestinianos no Egipto e na Jordânia. Corri a ler: era contra realojar os palestinianos... tão perto. Claro que entre a Gronelândia e Elon Musk o céu não é o limite, vi até um cartoon com o foguetão a postos. Mas ainda nenhuma sondagem sobre Marte. Uma pesquisa do Jewish People Policy Institute pouco anterior à das TVs mostrou que 7 em cada 10 judeus israelitas querem “os árabes de Gaza realojados noutro país”. Aqui na Terra. Ainda.»

Alexandra Lucas Coelho, Público de 15 de Fevereiro de 2025

OLHAR AS CAPAS


 Evolução do Movimento Operário e do Sindicalismo em Portugal

Victor de Sá

Capa; Carlos Oliveira

Colecção: Cadernos da Revista Técnica do Trabalho nº 1

Editora: Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e  Vestuário de Portugal, Porto, Março de 1981

Quanto à unicidade sindical, o programa da Confederação Nacional das Associações Operárias tinha o seguinte expressivo aditamento: «A Confederação não reconhece associações de classe que representam o desdobramento das primeiras existentes, porque, salvo justificadas excepções, tal funcionamento lhe parece um meio de enfraquecer o movimento operário». É esta uma das tradições mais profundas dos Trabalhadores portugueses – defender a unidade, evitar o fracionamento da organização operária, pois isso o enfraquece face à classe antagónica.

CANÇÃO DA MANHÃ

 

Para ti, Isabel,

este “desejo de te encontrar” quando ainda

não te conhecia


Como os estranhos pássaros nascidos em tua boca
como os rios que te correm entre os olhos
como   as   esmeraldas   que   formam   as   asas   dos   teus ombros
como os longos ramos da árvore de sono do teu braço
como o grande espaço em que o teu corpo repousa
deitado na tua própria mão
como a tua sombra idêntica à nuvem
que se encontra no mar

assim é a presença que de ti tenho
nas noites em que o fogo se acende
nas montanhas longínquas e fulgurantes
quando os meus passos me projetam
para os mais elevados cumes solitários
quando o sangue canta
através do aço vibrante do meu corpo
levando-me ao longo do caminho de flores rubras
que tu plantaste

assim é o desejo de te encontrar
nascida nas minhas mãos
erguida como torre de catedral perdida
envolta na minha boca
caminhando comigo
pela estrada que nossos pés abrirão triunfantes

Mário-Henrique Leiria  Depoimentos Escritos

domingo, 16 de fevereiro de 2025

POSTAIS SEM SELO

Não são dedos:

são lágrimas.

Não são cordas:

são fios de saudade.

Não é um país: é um coração

que soletra lágrimas

na saudade que temos de nós mesmos.


Mia Couto

DISTO, DAQUILO, E DAQUELOUTRO


Fernando Assis Pacheco, quando entrevistou Carlos Paredes para os seus Retratos Falados, intitulou a entrevista: «O Filho do Rei Artur».

Carlos Paredes era um homem que detestava falar de si próprio.

J. Plácido Júnior que assina, na revista Visão, a evocação dos 100 anos do nascimento de Carlos Paredes, conta a seguinte história:

«Se como pessoa e músico, provocava emoções fortes em terceiros, Paredes era, em contraponto, de uma modéstia desmesurada. Um bom exemplo está numa história relatada pelo jornalista e escritor António Costa Santos, que perdeu a conta às entrevistas que lhe fez. Numa dessas vezes, levou consigo o álbum Espelho de Sons, de 1988, para o guitarrista lhe autografar a capa. “E ele escreveu: “Com a admiração do Carlos Paredes.” António Costa Santos ficou estupefacto: “Ó Paredes, então vai pôr-me aqui com admiração?!... Quem o admira sou eu” Que não defendia-se o guitarrista, “O amigo é muito importante”. Conclusão: “Não posso mostrar isto a ninguém. É uma vergonha”, ri-se hoje António Costa Santos, embora na altura tenha ficado virado do avesso com Paredes.”»

Fernando Assis Pacheco lembra a Carlos Paredes que, em Maputo, foi aplaudido de pé no final do espectáculo.

Paredes lembra logo que as palmas não foram para ele, mas para o Malangatana - «já viu o meu descaramento?» -  porque atreveu-se a pedir ao pintor que no palco pintasse um quadro enquanto ia improvisando música de acordo com o que via surgir na tela.

«O Malangatana prezou de tal maneira este contacto com um músico português que escolheu três telas virgens, oferecidas por um grande pintor moçambicano seu mestre e, sobre elas fez três quadros. Entendemo-nos perfeitamente. Eu ia vendo surgir as cores e as formas, e entusiasmava-me.»

Rui Vieira Nery, num artigo no JL:

«Raros terão sido os criadores musicais portugueses das últimas décadas, em qualquer género, que tanto tenham marcado, como referência indispensável e querida, o nosso imaginário musical e o nosso prazer elementar  de ouvir música.»

O pintor Júlio Pomar:

«O país onde o Carlos Paredes fez a sua música numa nuvem de merda com algodão em rama por fora. O que dava arranjo a certos que hoje ainda choram de saudades desses tempos.»

A escritora Lídia Jorge:

Cresci e fiz-me adulta, pensando que a guitarra portuguesa era o Paredes. Isto é, a guitarra portuguesa e Paredes eram, para mim, coincidentes, mesmo uma única coisa.»

A este génio, a este talento do tamanho do mundo, a ditadura portuguesa, nos princípios dos anos 60, atirou-o para os calaboiços da PIDE. Esteve lá um ano e meio, acabando por expulso da função pública, após o julgamento.

Ruy Vieira Nery:

«Era um príncipe que não soubemos merecer. E no momento desta última despedida só consigo lembrar-me das palavras do Hamlet: Adeus, doce príncipe»

«No dia em que me cruzar com o russo que me atirar à cara o “Guerra e Paz” e o americano que me tente ofuscar com o Grand Canyon, eu pergunto-lhes: “Têm dois minutos e vinte e sete segundos?” Se não, pior para eles. Se sim, ficarão agradecidos para o resto da vida. Ponho-os a ouvir “Mar Goês”.

Mar Goês é a prova que sim. Sim, um dia os portugueses entraram em pequenos barcos e tornaram o mundo grande, porque completo. Havia de ser um amanuense do Hospital de São José, um tímido com andar estranho, que me confirmaria que já houve portugueses fortes. Os dedos de Carlos Paredes são como os lenhadores do pinhal de Leiria, são como o marinheiro que subia à gávea, são como o capitão que dizia por ali e não cedia.»

Ferreira Fernandes

VELHOS RECORTES

 

CONVERSANDO


Já hoje foi citado, mas voltamos a esse rapaz a quem chamam diabo.

Por causa do centenário do nascimento do Carlos Paredes, andei à procura de um texto que há muito, e muito tempo mesmo, fiz sobre o disco Guitarra Portuguesa do Carlos Paredes. Julgava-o aqui colocado no Cais mas não está.

Nessa procura, acidentalmente, verifiquei que este Blogue no dia 7 de Fevereiro fez 15 anos.

Caramba! Como é possível?

Decididamente, números redondos para aqui são chamados

Pelos 10 anos do Cais do Olhar ainda arranjámos uma antologia de textos.

Que fazer?

Iremos re(publicando) o que, fruto do acaso dos dias, se for encontrando.

 

Legenda: fotografia Shorpy: ardinas em Skeeter's Branch, Jefferson perto de Franklin, St. Louis, 1910.

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS

 Não o pensava antes, quando escutava a guitarra de Carlos Paredes, mas hoje, recordando-a, compreendo que aquela música era feita de alvoradas, canto de pássaros anunciando o sol. Ainda tivemos de esperar uma década antes que outra madrugada viesse abrir-se para a liberdade, mas o inesquecível tema de Verdes Anos, esse cantar de extática alegria que ao mesmo tempo se entretece em harpejos de uma surda e irreprimível melancolia, tornou-se para nós numa espécie de oração laica, um toque a reunir de esperanças e vontades. Já seria muito, mas ainda não era tudo. O resto que ainda faltava conhecer era o homem de dedos geniais, o homem que nos mostrava como podia ser belo e robusto o som de uma guitarra, e que era, a par de músico e intérprete excepcional, um exemplo extraordinário de simplicidade e grandeza de carácter. A Carlos Paredes não era preciso pedir que nos franqueasse as portas do seu coração. Estavam sempre abertas.

José Saramago em O Caderno 2º Volume

MÚSICA PELA MANHÃ


 De Os Verdes Anos, filme de Paulo Rocha, com argumento de Nuno Bragança e música de Carlos Paredes, poema de Pedro Tamen, diz Jorge Silva Melo em Século Passado, memórias suas, que viu o filme no São Luiz, tinha quinze anos e nenhum outro filme  «tenha rasgado mais o céu possível do que este pequeno filme juvenil, inseguro tímido e lírico de Paulo Rocha, filme feito aos vinte e cinco anos (o Paulo nasceu em Dezembro de 1936, o filme traz a data de 1963).

Com que então, era possível? Filmar os locais que eu conhecia, filmar desencontros de amor pelo entardecer do campo grande, filmar as barracas que se construíam em cima da Avenida do Aeroporto, até perdermos a vista noutras Chelas e, agora, o parque do Rock in Rio? Filmar Floresta do Ginjal, aquela escada íngreme forrada a conchas? Filmar pessoas, como a criada eu andava pela casa dos meus pais chorando com os folhetins da rádio e aos domingos de namoro? E ver nisto, inscrever na paisagem que todos os dias eu via (a esquina do Vává…) a violência daquele final, a morte da rapariga, o rapaz que desafia a cidade?

Ele havia Salazares, a Pide era mesmo ao lado do São Luiz, a censura não estava longe, mas aquele foi um dia rasgado, puro e limpo, o dia sob a ditadura em que vi os Verdes Anos.

«É o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de frustração, espaços claustrofóbicos, sem saída, onde tudo se frustra e tudo agoniza numa morte branda», diz João Bénard da Costa, e ninguém sabe mais do que ele.

E o Paredes continua a tocar. Até ao sabugo, como o Paulo Rocha.

O Poema Possível

Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

(Pedro Tamem)




O OUTRO LADO DAS CAPAS


 

Pouco ou nada somos de referir números redondos.

Se percorrer os caminhos deste Cais, somos capazes de encontrar excepções: os 100 anos do nascimento de Carlos Paredes, que hoje acontecem, é uma delas.

Não referimos os 100 anos de nascimento do António Ramos Rosa, (17 de Outubro de 1924), Alexandre O’ Neill (19 de Dezembro de 1924), outros - tantos - que agora não lembro.

Se houver tempo (o sacana cada vez está a ficar mais curto e tantas, tantas coisas que já não farei…) tenho a ideia de criar uma secção – Gente Minha – que recordará os diversos escritores, músicos, pintores, amigos, que marcaram estes quase 80 anos de andar por estes caminhos, a maior parte caminhos de pedras.

Carlos Paredes está nessa lista.

Mas hoje, sabe-se lá porquê, ou sabe-se mesmo?, assinalamos os 100 anos do nascimento do Carlos Paredes.

Nestes Movimentos Perpétuos, a escritora Sarah Adamopoulos, começa assim o seu texto:

«Lembro-me de ser adolescente e de o ver em Sete Rios na fila de espera do autocarro, com uma pasta na mão, e de achar que ele não tinha nada ar de músico mas apenas e tão-somente ar de senhor que ia ou voltava do emprego».

E este é o começo do texto de Urbano Tavares Rodrigues:

«O Sonho permanente de Carlos Paredes foi a felicidade dos homens.»