quinta-feira, 3 de setembro de 2015

IRONIAS DO DESTINO


Guardo dos Suplementos Literários, principalmente os publicados durante a ditadura, as mais gratas recordações.

Raro era o jornal que não tinha o seu suplemento, quase todos publicados às quintas-feiras, uns mais bem trabalhados que outros, mas qualquer um com o seu ponto de interesse.

Para mim o mais interessante, sempre foi o do Diário de Lisboa, e recordo as críticas literárias do Alexandre Pinheiro Torres, do Mário Sacramento, do Álvaro Salema, do Eduardo Prado Coelho.

José Saramago, Vitor Silva Tavares, José Cardoso Pires, foram alguns dos coordenadores do Suplemento do Lisboa.

Do muito do que por esses suplementos fui lendo fiquei a conhecer escritores, muitos dos quais nem sequer o nome ouvira.

É o caso deste artigo de Afonso Cautela, a propósito da edição, pela Ulisseia, de uma Antologia do Raul de Carvalho e publicado no Suplemento Literário do Jornal de Notícias de 3 de Março de 1966.

Depois de o ler, fiquei de imediato com a ideia de que Raul de Carvalho era um escritor que teria de conhecer.

O dinheiro era curtíssimo e eu apontava os autores e os livros num caderdinho, na expectativa de uma qualquer oportunidade para os adquirir.

Numa tarde de sábado do ano Abril de 1972, num género de carripana, que do lado direito de quem entrava no Parque Mayer, vendia livros e revistas em 2ª mão, no meio Corins Tellado, Caprichos, Crónicas Femininas, Plateias e por aí adiante, encontrei a Poesia de Raul de Carvalho, editada em 1955 pela Portugália Editora.

Custou 5$00 que, naquele tempo, ao contrário do que se possa pensar, não era um mero preço.

Precisamente o livro em que está inserido Vem Serenidade, o tal poema que Bénard da Costa diz ser dos mais belos poemas da língua portuguesa.

 Sorte de leitor.

Vem, setrenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos
sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte
tem todos os direitos.

As palavras de Afonso Cautela, que lera em 1966, tinham toda a razão de ser.

Faço os recortes:



Assim se fazia a minha alegria de leitor, aquilo que passa por ser cultura e é amor.

Aconteceu com Raul de Carvalho, com José Gomes Ferreira, com José Saramago, tantos outros.

Descobri-los, ficar uma felicidade apaixonada a rondar pelo corpo e nunca mais deixar de os ter a meu lado.

Dos vinte e cinco livros que Raul de Carvalho publicou, 13 são Edição do Autor.

Para além dos custos de composição e impressão, Raul de Carvalho tinha de andar de livraria em livraria a colocar os livros, que ficavam em lugares pouco visíveis, a tralha é que tem de ficar bem à vista.

Tardiamente faziam contas com ele e nem todas chegavam a fazê-las.

E Raul de Carvalho sempre viveu com extremas dificuldades: económicas e de saúde.

Um quotidiano de silêncios, humilhações, dificuldades inomináveis, uma descontrolada paixão pelos outros.

Mas com uma fidelidade a si próprio que tanto o maravilhava, comovia e de que tanto se orgulhava.

Viveu numa permanente solidão, uma amarga e dolorosa peregrinação, mas sempre soube de que lado estava a verdade e a justiça.

Era um doente de risco e sem ter com que pagar a alguém que o acompanhasse na doença, chegou a viver num asilo de caridade em Odivelas.

Hoje, penso que não: que adoeci, que fui
Envelhecendo, que há poucos livros úteis,
Que, para sobreviver, temos de trabalhar…
E o trabalho sem amor mata.
Não penso já no amor, penso na morte.
Não na morte que a todos nos espera, a um canto
do mundo, a um momento, não na morte final
estou pensando agora.

Jorge de Sena colocou-o entre os 100 melhores poetas do Século XX português.

E Baptista-Bastos dele escreveu:

Não o conheço de convívio, de fala, de gesto; conheço-lhe a poesia, porventura a forma mais íntima de lhe escutar a voz, lhe perscrutar as sombras, de entender os seus gritos hirtos, silenciosos, arranhados e feridos. Raul de carvalho. Um dos maiores poetas portugueses vivos, um homem marcado por suave tristeza, solidão proliferante em todos os mansos movimentos e, num escrínio raro, os poemas que escreveu, falando de si como se dos outros, de todos nós, falasse.

Em 1984, uis participar na IV Bienal de Vila Nova de Cerveira com uma comunicação sobre a jovem poesia portuguesa, que não chegou a apresentar.

Na madrugada de 12 para 13 de Agosto, o seu primeiro dia de estadia na vila, foi encontrado caído no chão da casa onde dormia.

Levaram-no para o hospital de Viana de Castelo, mas dada a gravidade do seu estado, encaminharam-no para o Hospital de S. João.

Com alta do hospital, foi repousar para casa do seu amigo Albano Martins, no Porto. Foi aí que uma pneumonia, no dia 3 de Setembro, colocou um ponto final no calvário dos dias atribulados que viveu.

No dia seguinte completaria 64 anos.

Ironias do destino, ou o que lhe quiserem chamar.

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