Olha, Mila, a
montra está cheia
de chocolates pequenos.
Talvez o Pessoa tenha escrito aqui
a Tabacaria.
Talvez vão dizer que está tudo dito
e o mais que eu mostro é habilidade.
Talvez que um dia, como tu dizes,
as escolas me recebam de novo
e eu aprenda verdadeiramente
como se diz amor em inglês.
Olha, Mila, para falar a verdade
eu estou muito esquecido dessas coisas
e todos os livros que li sobre a memória
não me deram memória nenhuma.
Para imitar o Pessoa, digo:
Precisamente neste momento
entrou aqui um jovem e pediu: - Licor!
Isso prova
que o amor é diferente para toda a gente.
Isso prova que o sangue do jovem não chega
para que ele se sinta cheio e à vontade.
Isso prova que os chocolates, os bolos e o resto
são medíocres formas de entendimento mútuo.
Olha, Mila, entre os medos que me assaltam e eu cultivo,
o principal é que a minha mãe já não goste de mim.
Sabes, nunca li com vagar o Álvaro de Campos
porque aquilo era demasiado meu para ser dele.
Porque as multiplicações dele
são as minhas multiplicações.
Porque nunca pus o ouvido à escuta
que não sentisse tudo calado à minha volta.
Porque não é fácil escrever poemas
quando os poemas são difíceis de roer.
E é mais fácil esconder a vergonha
do que a loucura.
Olha, Mila, se a poesia não está nos versos
também não está aqui.
O mais que a gente pode
é pedir que ela venha
e, quando chega,
pôr mais um prato e um talher na mesa.
Entretanto todos os sonhos são bons,
porque são inúteis.
Entretanto, o palhaço de corda recorda
o infeliz voo do Álvaro e dos outros.
Amanhã, que é domingo,
diremos: passou mais uma semana.
A máxima felicidade nossa
será ficar todo o dia na cama
sabendo que o sol, lá fora, é violento
e nos odeia.
Olha, Mila, todas as coisas continuam certas
quando a certeza nos abandonou.
Há quem tenha a voz muito alta
e tanto que basta-lhes falar
para que todas as distâncias os ouçam.
Nós, não.
Nós não sabemos escrever à máquina,
não escrevemos nem lemos as cartas
dos outros, que cruzam o Mundo.
Por isso é que os patrões nos pagam por esmola,
a angústia não é fingida, e amamos todos por obrigação.
Por isso é que a gente nunca sabe
quando fala verdade,
porque, para ser nossa, a verdade é mentira.
Olha, Mila, eu não me importo nada
que digam que o Pessoa
esteve comigo, hoje, nesta pastelaria;
que tenhamos nascido os dois no mesmo sítio,
um sítio onde se nasce por imoralidade.
E que tudo o que ele não viu
- praias, pontes, cidades e navios -
tenha querido agora
inundar o poema.
Não julgues, Mila,
que senti alegria
em calar-me!
Raul de Carvalho
Talvez o Pessoa tenha escrito aqui
a Tabacaria.
Talvez vão dizer que está tudo dito
e o mais que eu mostro é habilidade.
Talvez que um dia, como tu dizes,
as escolas me recebam de novo
e eu aprenda verdadeiramente
como se diz amor em inglês.
Olha, Mila, para falar a verdade
eu estou muito esquecido dessas coisas
e todos os livros que li sobre a memória
não me deram memória nenhuma.
Para imitar o Pessoa, digo:
Precisamente neste momento
entrou aqui um jovem e pediu: - Licor!
Isso prova
que o amor é diferente para toda a gente.
Isso prova que o sangue do jovem não chega
para que ele se sinta cheio e à vontade.
Isso prova que os chocolates, os bolos e o resto
são medíocres formas de entendimento mútuo.
Olha, Mila, entre os medos que me assaltam e eu cultivo,
o principal é que a minha mãe já não goste de mim.
Sabes, nunca li com vagar o Álvaro de Campos
porque aquilo era demasiado meu para ser dele.
Porque as multiplicações dele
são as minhas multiplicações.
Porque nunca pus o ouvido à escuta
que não sentisse tudo calado à minha volta.
Porque não é fácil escrever poemas
quando os poemas são difíceis de roer.
E é mais fácil esconder a vergonha
do que a loucura.
Olha, Mila, se a poesia não está nos versos
também não está aqui.
O mais que a gente pode
é pedir que ela venha
e, quando chega,
pôr mais um prato e um talher na mesa.
Entretanto todos os sonhos são bons,
porque são inúteis.
Entretanto, o palhaço de corda recorda
o infeliz voo do Álvaro e dos outros.
Amanhã, que é domingo,
diremos: passou mais uma semana.
A máxima felicidade nossa
será ficar todo o dia na cama
sabendo que o sol, lá fora, é violento
e nos odeia.
Olha, Mila, todas as coisas continuam certas
quando a certeza nos abandonou.
Há quem tenha a voz muito alta
e tanto que basta-lhes falar
para que todas as distâncias os ouçam.
Nós, não.
Nós não sabemos escrever à máquina,
não escrevemos nem lemos as cartas
dos outros, que cruzam o Mundo.
Por isso é que os patrões nos pagam por esmola,
a angústia não é fingida, e amamos todos por obrigação.
Por isso é que a gente nunca sabe
quando fala verdade,
porque, para ser nossa, a verdade é mentira.
Olha, Mila, eu não me importo nada
que digam que o Pessoa
esteve comigo, hoje, nesta pastelaria;
que tenhamos nascido os dois no mesmo sítio,
um sítio onde se nasce por imoralidade.
E que tudo o que ele não viu
- praias, pontes, cidades e navios -
tenha querido agora
inundar o poema.
Não julgues, Mila,
que senti alegria
em calar-me!
Raul de Carvalho
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