Pergunta do exame de Filosofia. Quando o nível é este, mais vale não haver nível. Pobres professores, pobres alunos, pobre mundo que nos deste Aristóteles e Camões para isto.
Copiado da Antologia do Esquecimento
Pergunta do exame de Filosofia. Quando o nível é este, mais vale não haver nível. Pobres professores, pobres alunos, pobre mundo que nos deste Aristóteles e Camões para isto.
Copiado da Antologia do Esquecimento
Agora talvez entendas porque não escrevo
entretida com a arquitectura volátil dos dias
com os afazeres esponsais e profissionais
a apanhar eléctricos em curto-circuitos
às voltas com este tumulto manso que abafo
porque, sejamos sinceros, só grandes tumultos
dão grandes poetas, de resto há a frieza
dos que se mentem a si próprios
e vão chamando a si os pássaros
quando o que deveriam era libertar os seus
numa torrente que não acompanham ortografias
nem radiografias sentimentais.
Desculpa se me tornei naquilo que queria ser
quando escrevia: amante e amada
de tal forma que se tocar em flores elas se multiplicam
se beber água nasce um caudal por entre milhares de minérios
se falar de estrelas um segundo demora anos-luz a passar.
À antiga pergunta se antes a vida que a escrita
melhor a primeira quando pior é a segunda
porque, mais uma vez a sinceridade,
só grandes vidas dão grandes escritas,
grandezas díspares, com certeza, mas grandezas, sem dúvida.
Assim chego eu a casa e faço o jantar
e lavo a loiça – quando não a acumulo em pilhas –
e leio livros – quando não me lembro da televisão –
e sou feliz quando enlaço as mãos na maresia
e vou ao cinema com amigos
e passeio de braço dado com a mamã.
Se isto dá uma grande poeta?
tenho-me perguntado, todos os dias,
e à noite uma cavalgada inquieta
dirige-se à região desamparada do cérebro
à côncava existência do corpo ainda insatisfeito
a essa solidão sublime que me levou em certos dias
aos Himalaias e noutros ao farol de Brest.
Nesses segundos que se dirigem a mim
Von Hofmannsthal volta ao esperma para não nascer
e tudo é possível desde amar mulheres até matar
e sobreviver ao crime limpidamente.
Nesses segundos os meus poemas poderiam ser grandes
e ser eu uma grande poeta
apascentando-me de folhinhas de louro
e para mim ter metros infindos de mundo por explorar.
Ana Salomé
Acabaram com a agricultura, com o tintol a martelo, com as morcelas caseiras, com o tabaco nos restaurantes, com o escudo, com a frota pesqueira, com o Aquilino nas escolas, com a tropa obrigatória. Agora espantam-se porque o povo só se sente patriota com a selecção? Pensassem nisso antes.
Filipe Vicente
Actas do colóquio
realizado no Padrão dos Descobrimentos em 8, 9 e 10 De outubro de 2001
Coordenação: Onésimo
Teotónio Almeida
e Manuela Rêgo
Intervenções: João
Medina, António Reis, Guilherme d’Oliveira Martins, Ernesto Rodrigues, Paula
Morão, Eugénio Lisboa, Maria de Sousa, Raúl Hestnes Ferreira, Luísa Ducla
Soares, Teresa Martins Marques, Eduardo Lourenço, entre outros.
Capa: Ernesto Matos
Edição: Câmara Municipal de Lisboa, 2001
A edição das obras completas de Miguéis (13 volumes) pelo Círculo de Leitores teve 5000 compradores, pese embora o facto de em não poucos casos se tratar de encadernações que estão simplesmente a adornar estantes em novas-ricas casas.
A última crónica de Ana Cristina Leonardo no Público de 21 de Junho de 2024, contrariamente ao que é habitual, teve diversos reparos. A crónica tinha o título «À espera de um milagre da Senhora dos Aflitos», referia levemente a guerra em Gaza mas, porque andamos em tempo de pontapé na bola, copio um desses comentários mas que não têm a ver com o genocídio perpetrado por Netanyahu:
«Os conflitos são muitos, mas nada nos
faz mudar as preferências que fazem arrostar os carolas do seu desporto
preferido: o futebol. Venha o que vier (nem o aviso de que o pai se está
enforcando desmotiva aquele “ataque final” de um qualquer que está marcando um
penalti) os desvia da imagem da TV naquele minuto crucial. Somos um país antigo
nascido de uma árvore de folha perene de fundas tradições que não desvia os
seus cidadãos de uma soneca à sombra dos nossos ilustres cidadãos. Não é do
vácuo que faço estas citações. É por não gostar delas que cito Almada Negreiro:
Se isto é ser Portugal, antes, queria ser espanhol.»
1.
A 17 de Junho foi formalizada a candidatura de
Arrábida ao reconhecimento de património mundial. Alguém disse:
«Só assim garantimos que o queijo de Azeitão ou a maçã
camoesa continuam no território».
Felizes, onde estiverem, encontraremos o poeta
Sebastião da Gama que amava a sua serra-mãe e o crítico e escritor João Bénard
da Costa, que todos os anos, por Setembro, arrabidava e, como ninguém conhecia
a Mata do Solitário.
«O murmúrio é a alma de um Poeta que se
finou
e anda agora à procura, pela Serra,
da verdade dos sonhos que na Terra
nunca alcançou.»
2.
O número de
mortos durante a peregrinação muçulmana a Meca, que decorreu sob forte calor,
ultrapassou os mil, segundo uma contagem efetuada pela agência noticiosa
France-Presse. 3. Em 2023 o número médio mensal de imigrantes
registados na Segurança Social e a trabalhar por conta de outrem superou os
495 mil, um acréscimo de 35,5% face ao ano anterior; em 10 anos, de 2014 a 2023,o número de
trabalhadores estrangeiros cresceu nove vezes e são já mais de 20% as
empresas que recorrem a imigrantes; os três sectores mais dependentes
de imigrantes são a agricultura, o turismo e a construção; os imigrantes em
Portugal são sobretudo jovens com a média de 33 anos, 63% são homens, 37% são
mulheres e estão sobretudo concentrados nas áreas metropolitanas de
Lisboa e Porto, Algarve e Litoral Alentejano; recebem salários 15% mais
baixos que os dos portugueses. |
4.
As pensões médias encolheram 15% nos últimos 15 anos; em Fevereiro foram registados mais 7,2 mil desempregados no país; mais de 65% dos jovens portugueses abaixo dos 30 anos recebem menos de mil euros líquidos mensais.
5.
«A mistificação parte do princípio de que em 2024 há unanimidade à volta do 25 de Abril, o que não é verdade. O modo como à direita, radical, se tem usado como contraponto ao 25 de Abril o 25 de Novembro é objectivamente contra o 25 de Abril, até porque o 25 de Novembro da direita é uma falsificação histórica. Não me parece que o objectivo de criar uma comissão oficial para celebrar o 25 de Novembro seja para homenagear o grande lutador pela democracia em 1975 no plano civil, Mário Soares, ou o partido mais relevante nessa luta, o PS, e os militares do Grupo dos Nove, como Vasco Lourenço ou Sousa e Castro ou Ramalho Eanes e o Presidente Costa Gomes, tudo gente que a direita detesta. E limitar essas comemorações a Jaime Neves, que actuou sob ordens, é um reducionismo absurdo, assim como esquecer o papel decisivo de Melo Antunes, que somou à derrota da esquerda militar no dia 25 a vitória sobre a contra-revolução, recusando no dia 26 ilegalizar o PCP.»
José Pacheco Pereira no Público
6.
Em Novembro será interessante ver como será a dimensão da
manifestação “popular” que as direitas arranjaram para comemorarem o 25 de
Novembro.
Virão, desde o Portugal profundo as «massas populares».
Chegarão, à capital, em camionetas?
Serão eles que pintarão os cartazes? As palavras de
ordem?
Voltar aos anos setenta
como se fosse possível
essa melodia lenta
transpor às cegas o nível
da realidade obtusa
do dia morno que passa
e escutar a semifusa
dessa década tão baça
que em ti se prolonga hoje
à medida de ninguém
febre que agora te foge
primavera que não vem
Ano de setenta e dois
o teu irmão a morrer
breve despiste e depois
cada dia outro dever
outra missão a cumprir
em secretos rituais
a vida inteira em devir
menos por menos dá mais
Ano de setenta e quatro
com revolução em abril
e todo um novo teatro
no teu drama juvenil
em anos adolescentes
soturnos introvertidos
Já não sabes o que sentes
fantasma de tempos idos
sombra a passar num só flash
filme que já não existe
por onde quer que hoje vás
tens razões para ser triste
Anos setenta talvez
à espera do infinito
silhuetas que mal vês
agitadas em conflito
Tudo era esquerda ou direita
em conspirações de bares
e na noite mais suspeita
movimentos militares
Copos fumos atmosferas
o Botequim o Procópio
e tu sem saber quem eras
coração-caleidoscópio
Socialistas comunistas
PPD e CDS
deputados nomes listas
e mais partidos que houvesse
Cunhal Soares Sá Carneiro
inesperada companhia
era teu aquele cheiro
de um país que ali nascia
Primeiros dias do mundo
a acontecerem em ti
e essa memória sem fundo
a iludir-te hoje aqui
Ano de setenta e sete
dizer adeus a teu pai
tudo o que a vida promete
mas de súbito se esvai
Fotografias cinzentas
golas altas bandas largas
entre as imagens que inventas
certas dívidas não pagas
Helmut Schmidt Giscard d’Éstaing
ou Kissinger e Brejnev
a preto e branco em écran
de harmonia semibreve
na exausta guerra fria
em que tudo se explicava
e o planeta se movia
numa corrente de lava
Anos setenta obscenos
primeiras pornografias
menos por mais dava menos
cassetes que descobrias
e alimentavam isso
a que chamavas o sexo
coisa mágica feitiço
espelho côncavo ou convexo
Anos setenta no fim
de uma infância que te amava
memória em forma de assim
cadência que nada trava
Cinquenta anos depois
tudo é tempo tudo é nada
sonho só do que não foi
longe dessa madrugada
como se o mar engolisse
os recados do destino
e fosse agora tolice
repassar a pente fino
os vãos sinais desses anos
entretidos à procura
dos sintomas mais insanos
humanos ou trans-humanos
ou a última loucura
que é ficares assim absorto
nessa miragem impura
a olhar para o vazio
talvez vivo talvez morto
com uma cidade a teus pés
Ainda saberás quem és?
E esse rio que vês no Porto
ainda é o mesmo rio
Nota do Editor: Este poema de Fernando Pinto do Amaral foi tirado do Público de 17 de Abril de 2004.
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.
“Não há amores
felizes”, canta com uma estóica e tão bela resignação Françoise Hardy. Mas será
que pode haver “desamores felizes”? Os amores de Françoise, cinco contadinhos
pelos dedos de uma mão, jura ela, foram todos infelizes, estradas acidentadas a
desaguar na solidão. Foi na nostalgia de um desamor que Françoise Hardy se
consolou, até há poucos dias, até ao dia da sua morte.
Bob Dylan foi esse
“desamor feliz”. Lembro que ninguém conhecia Françoise. Vivia, em Paris, não
longe do Pigalle, na rua du Aumale, a mesma onde, por menos de um ano, no
século XIX, vivera Richard Wagner. Deve ter ficado por ali um acorde da
“Cavalgada das Valquírias” à espera, um século depois, de entrar pelo ouvido da
pequena Françoise. Ela dormia no quarto com a irmã esquizofrénica, na sala do
mirrado apartamento, a mãe, solteira, contabilista pobre e tão infeliz, que
tirava prazer de fazer infeliz a filha, capaz de lhe dizer que tinha umas
pernas tão magras que lhe ficariam em Guimarães com elas para facas, soubesse
Françoise onde era Guimarães.
Interessa é que era
Hardy uma menina e começou a cantar. Em 1962, na noite em que a televisão
francesa se esgadanhava para analisar os resultados do referendo sobre a
eleição por sufrágio universal do presidente da república, sei lá se foi De
Gaulle que pediu, aparece num intervalo a menina Françoise e da boca dela
ouviu-se uma coisinha moderníssima, a canção que ela escreveu e chamou “Tous
les garçons et les filles”. Os ouvidos de França desabrocharam. Escusado será
dizer que no dia seguinte, todos os “garçons” e todas as “filles” entoavam,
dançavam e se derretiam em tristeza com a encantada jeremiada daquela canção. E
derreteu-se a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha, e eu em Angola, “la main dans
la main”, também.
Do outro lado do
Atlântico, soprada pelo vento, chegou às mãos do ainda principiante Bob Dylan,
a fotografia de Hardy. Olhou para aqueles ossos a quererem furar as maçãs do
rosto, para os seios pequenos, para a cintilante mini-saia e apaixonou-se. E
eu, colonialíssimo, em Angola também.
Como eu, Dylan só vira
uma fotografia. Como eu, escreveu cartas a essa fotografia, chorou e suspirou
nesse tempo em que os tempos tanto mudavam. Mas eu não canto nem tenho
talentos. Bob Dylan, sim. Já Françoise filmava com Hollywood e veio Dylan cantar
a Paris, onde também Amália cantou, sala mítica, ao Olympia.
Françoise veio vê-lo. E
Dylan, a acústica uma boa merda, falhou. Ao intervalo, recusou voltar ao palco,
a não ser que a desconhecida Françoise viesse ao camarim consolar o seu
derrotado ego. Ela veio. E tiremos, com a ajuda de Einstein, esses 10 minutos
íntimos da fita newtoniana do tempo. No final do espectáculo, Dylan levou
Hardy, Johnny Hallyday e mais uma mão cheia de franceses para a soberba delícia
que era então o hotel Georges V. De olhos fixados em Hardy, deixou-os a todos
menos ela, e na sua suite de americano cantou “Just Like a Woman” e “I Want
You” à raptada miúda da rua du Aumale, ali perto do Pigalle.
Se isto não é uma
declaração de amor, o que é uma declaração de amor? E eis a minha inquietação:
um tipo do Chega, um tipo do Bloco de Esquerda poderão ainda compreender
a gentileza, a doçura, a angústia amorosa que está por trás de tudo isto?
Nada aconteceu,
confessa com ternura Françoise, a não ser terem ficado a olhar-se num puríssimo
sol, lá, si. Nunca mais se viram, mas Dylan escreveu esta dedicatória num LP:
“A Françoise na margem do Sena, sombra gigante de Notre Dame.”
Sim, já houve amor. E
que, lá do céu, Françoise continue a ser o “soleil” que tanta falta nos faz.
Manuel S. Fonseca na sua Página
Negra
A Mulher Na Sociedade Portuguesa
Ciclo de Colóquios na
Faculdade de Direito de Lisboa
Textos de:
Isabel da Nóbrega,
José Esteves, Natália Nunes. Sérgio Ribeiro, Sophia de Mello Breyner Andresen,
Urbano Tavares Rodrigues e outros
Capa: Miguel Flávio
Colecção Caderno de
Hoje nº 8
Prelo Editora,
Lisboa, Maio de 1969
Pois não existe o problema da mulher, mas sim o problema da humanidade.
E é por isso que o Feminismo é um caminho errado e já ultrapassado. Aliás
sempre à roda da mulher se criaram falsos problemas.
(Da intervenção de Sophia Mello Breyner Andresen).
Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado -- servo de um
deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo.
Mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.
Mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.
Daniel Filipe em A Invenção do Amor e Outros Poemas
Ferveu. Thermos. Copo.
Frasco. Colher de chá. Tudo na bandejinha. Permanente, esta interrogação. Não
me agarro a certezas. Estou sempre pronta a rever as minhas ideias. Mas não me
integro em nenhum meio. Não lhes pertenço. Porquê? A sensação, por vezes, de me
desintegrar… Oh, Henrique…»
- pronto. A bandejinha. Afasta o candeeiro.
– Lá fora, apagaste a
luz, amor?
– Apaguei.
– E fechaste o gás, meu
amor?
– Sim, fechei.
- Mas há uma porta que
range… Tinha de ser…
– Eu vou fechá-la,
amor, eu vou já ver. – Era a porta da varanda. Abri-a de par em par. A fresca
noite entrou. É noite. É Junho, amor, e estamos vivos. E não estamos sozinhos.
Oh, esta alegria de não estarmos sós.
Muitos livros da Biblioteca da Casa foram comprados em
alfarrabistas.
Nas tardes de sábado, ia com o meu pai à Barateira no
Chiado e ao Fausto na Rua Angelina Vidal e nunca saíamos de mãos a abanar.
Este livro de Alexandre Vieira foi oferecido pelo
autor à redacção do jornal A Voz.
O matutino A Voz
era um jornal católico, monárquico, conservador e ultra-salazarista.
Designava-se como «O jornal de maior
assinatura em Portugal»
O jornal «A Voz», juntamente com o «Diário da Manhã», deixou de se publicar nos inícios de 1971 e. ambos, deram lugar a um único título: «Época», que deixou de se publicar logo a seguir ao 25 de Abril e veio a ter duas tentativas de publicação, primeiro como «A Época», tendo como director José Manuel Pintasilgo, dias de pois como «A Época Livre» dirigida por tipógrafo e um grupo de jornalistas do jornal, mas todas as condições eram precárias e os ventos tinham mesmo mudado.
Um dia hei-de aqui trazer os livros comprados em alfarrabistas, com dedicatórias dos seus autores a camaradas seus, bem como outras gentes.
O trabalho não está organizado nesse sentido, tão pouco é tarefa fácil, mas irei tentar.
No Domínio das Artes Gráficas
Alexandre Vieira
Edição do Autor,
Lisboa, Setembro de 1967
No momento em que escrevo estas linhas agita-se a corporação profissional a que pertenço pela conquista de uma jorna mais alta, ao mesmo tempo que pretende restabelecer o regime de salário mínimo, que presentemente não é respeitado pelos industriais de tipografia, forcejando também por conseguir o pagamento dos dias feriados e dos domingos, à semelhança do que se verifica em relação aos colegas que trabalham nos estabelecimentos do Estado e nos jornais diários.
- Tenho cegueiras, Ntunzi. Sofro da
doença de Silvestre.
Fui à gaveta da cozinha e retirei a
pasta da escola que escancarei ante o olhar atónito de meu irmão.
- Veja estes papéis – disse, estendendo
um maço de páginas caligrafadas.
Tudo aquilo eu redigira nos momentos de
escurecimento. Atacado por cegueiras deixava de ver o mundo. Só via letras,
tudo o resto eram sombras.
- Você, agora, é uma sombra.
- Já tenho nome de sombra.
- Entende a caligrafia?
-Claro, esta é a sua caligrafia. Bem
desenhada, como sempre foi… Espere
Um pouco, está a dizer que escreveu tudo
isto sem ver?
- Deixo de ser cego apenas quando
escrevo.
Mia Couto em Jesusalém
Legenda: pormenor da capa da autoria de Rui Garrido
para o livro Jesusalém
«Um painel independente de especialistas
em direitos humanos, nomeado pelas Nações Unidas em 2021 para investigar
denúncias de violência nos territórios palestinianos e em Israel, acusa o
Exército israelita de ter cometido crimes contra a humanidade, incluindo o de
extermínio, nos primeiros meses após o lançamento da ofensiva em curso na Faixa
de Gaza.
Num relatório publicado nesta
quarta-feira, o painel de três especialistas acusou também o Hamas de ter
cometido crimes de violência sexual contra civis durante os ataques de 7 de
Outubro de 2023 em território de Israel, principalmente no festival de música
que estava a decorrer junto ao kibutz Re'im.
As investigações do painel centraram-se
nos primeiros três meses do conflito, entre 7 de Outubro e o final de 2023, e
detalharam vários crimes cometidos pelo Exército de Israel e pelo Hamas.
No entanto, as principais acusações são
dirigidas ao lado israelita, acusado de usar a fome como uma arma de guerra e
de punir colectivamente a população civil palestiniana, e de usar a violência
sexual "como parte dos seus procedimentos operacionais".»
Recortado do Público de 12 de Junho de 2024
Legenda: imagem do Expresso.
O que se passou ontem na Assembleia da República, numa Comissão Parlamentar de Inquérito durante a audição da mãe das duas crianças luso-brasileiras, foi uma vergonha, um «espectáculo» degradante e indecoroso para o qual faltam palavras que permitissem ir mais além na classificação.
Lembrar que o 25 de Abril
aconteceu há 50 anos e é tempo de se encontrarem caminhos para impedir aquela
coisa de extrema-direita, que nasceu e cresceu graças às atitudes de Augusto
Santos Silva enquanto presidente da Assembleia da República e também do apoio
que os órgãos de comunicação social, principalmente as televisões, lhe têm
vindo a emprestar e que, em não mais pensa do que na destruição da Liberdade e
da Democracia.
Também terá que se dizer aos
deputados das direitas que uma comissão de inquérito não pode redundar em
inquéritos pidescos.
Não vale tudo!
Toda a história do mundo não é mais que um livro de imagens reflectindo o mais violento e mais cego dos desejos humanos: o desejo de esquecer.
Herman Hesse
Manuel de Lima
Capa: Soares Rocha
Colecção Obras de Manuel de Lima nº 1
Editorial Estampa, Lisboa, Setembro de 1972
-Olhe, Sr. Alfa, já
sabe. Eu não posso esperar pelo valor daqueles mamarrachos. É melhor pedir a
esse Mecenas Nepomucenas o dinheiro para a renda da casa. Quando é que ele
disse que vinha?
- Está por aí a
rebentar!...
sabes, as aves aquáticas já não pernoitam junto ao mar nem por entre os nossos dedos de areia
sobem-nos vozes calcárias à garganta, estrangulo-me neste humilde canto, fico
atento ao eterno silêncio do teu castelo
às vezes escuto o teu cantar,
raramente, é certo...mas quando cantas saem-te nomes puros da boca e sorrisos
diáfanos de cristais
os lábios incendeiam-se com vinho, teu corpo adquire o sabor misterioso das
algas
no crepúsculo expande-se o perfume a moreia frita, teu olhar é o mosto dos
nossos desejos
dançamos à roda dum mastro, saia em
papel de seda bordada com búzios...uma quadra flutua pela noite de nossos
cabelos
rodopias, e os teus amores são
relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas
breves, junco molhado
e o mar enche-se novamente de pássaros, embarcações semelhantes a beijos
que nos percorrem de alegria
Al Berto de Mar-de-Leva em O Medo
De noite, quando o frio
entra pela casa, e um resto de solidão gela o fundo da alma, aqueço-me com o
fogo que me deixaste.
De manhã recolho as
suas cinzas.
Nuno
Júdice em O
Fruto da Gramática
Legenda: imagem Shorpy
Rogério Fernandes
Portugália Editora,
Lisboa, Outubro de 1991
Trindade Coelho considerava que a instrução popular era um dos factores
mais importantes da reestruturação do «viver positivo dos homens». Para além do
bem fundado da ideia da indispensabilidade de uma radicação nítida, no povo, da
consciência dos seus direitos, não errava Trindade Coelho ao julgar a educação
factor de não pequeno peso na recuperação do atraso em que se encontrava o
País. De facto, a educação é um factor economicamente rendosos, e não pode
pensar-se na transformação eficaz do viver económico de um povo sem vastas
camadas humanas apetrechadas culturalmente para a realizarem.
A Casa dos Motas
Manuel Ferreira
Capa: José Araújo
Editorial Caminho, Lisboa, Maio de
1977
Tinha
de resolver a questão dos trabalhadores despedidos por causa dos tais papéis.
Que talvez se tivesse precipitado. Sempre fora a opinião da mulher. A culpa, em
grande parte, foi do primo, esse tal que andava lá por Lisboa na grande roda
política, e o mandou inscrever na União Nacional. Mas talvez o primo tivesse
razão. Os tais papéis agora apreciam com frequência, por toda a parte. Falavam
da fome, do desemprego, das greves, da necessidade de os operários se unirem e
reivindicarem junto dos patrões. Mota pensaca: onde é que isto vai parar?
Dois
dias depois alguma coisa mais aconteceria. Ali em Monte reala, na Marinha
Grande, em Leiria e pelos arredores. Tinham levado muitos. E entre eles o Rosa,
o Teixeira, o Manadas, o Caldo e até a Francisca Macha.
Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E, que sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde em O Livro de Cesário Verde
Volume 4
João César Monteiro
Coordenação: Vitor Silva Tavares
Capa: Luís Henriques
Livraria Letra Livre, Lisboa, Outubro de 2021
João de Deus e Joana passeiam à beira da falésia.
João de Deus: E a tua mãe?
Joana: A minha mãe morreu vai para três meses. Somos de Belmonte. Não sei
se conhece.
João De Deus: De passagem.
Joana: Não tínhamos mais ninguém. O meu pai vive em França, mas nunca
quis saber de nós. Não há terra como a nossa. Quando cheguei à gare de
Austerlitz não sabia uma palavra de francês. Queria ir direita ao serviço de
accueil a refugiados de Saint Joseph das
nações, mas ninguém se ralava. Encolhiam os ombros e gronhavam, gronhavam…
João de Deus: Resmungam muito esses parisienses. Parecem baratas tontas.
Joana: Por fim, fui ter onzième arrondissamento. Comi uma sopa e um naco
de pão e, ao fim de três dias lá dei com o paradeiro do meu pai.
João de Deus: O que é que o teu pai faz?
Joana: Trabalhava na Renault. Agora só bebe. Está no chômage. Vive com
outra mulher de quem tem mais três filhos pequeninos, mas também é uma
desgraçada. Só chora. Dormíamos todos a monte… Eu tinha que fazer de cega.
João de Deus: De ceguinha?
Joana: Sabe que quando estava a fazer de cega deixava mesmo de ver? Ficava
com dores horríveis nos olhos até me saltarem as lágrimas. Era de Olhar
fixamente.
João de Deus: Olha, para eu ver.
João de Deus: E não tens vergonha?
Joana: Tenho, mas o que é que hei-de fazer. O mau pai obrigava-me. A isso, e a pior.
João de Deus: A pior. Como?
Joana: Tenho que dizer’
João de Deus: Já tenho idade para
ouvir certas coisas…
Joana: A ir com os homens. Se me
recusasse, moía-me com pancada.
João de Deus: A moral dos cegos é
diferente da nossa.
Joana: O senhor é um santo mas já
lhe dei muita maçada. Coitadinho, até podia ter morrido enregelado por minha
causa.
João de Deus: Enregelado não direi,
mas meio da digestão de umas sardinhas de conserva podia dar-me uma congestão.
Íamos os dois.
Joana: Ainda por cima, não faço falta
a ninguém.
João de Deus: Já não estás só no
mundo. Vou-me ausentar por uns dias. É mais fácil um camelo passar pelo buraco
de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Sou um homem rico, isto é, privado do privado assento etéreo. Ando cá por baixo a refazer a minha
vidinha. Tenho uns Fazereres no Cambodja.
Joana: O senhor é a minha luz.
João de Deus: Sou fraca candeia.
num velho templo
nas profundezas de
Takano
na província de Ki
passei a noite
escutando
as gotas de chuva caindo dos cedros
Ryokan
Os 50 anos do 25 de Abril possibilitaram a saída de numerosos livros. Memórias, fotografias, histórias. Um aspecto interessante está relacionado com os livros tendo em vista as crianças, muitas delas que ainda não eram um sorriso na cara dos seus pais quando a ditadura caiu.
Um desses livro é Sempre escrito por Rita Taborda Duarte e ilustrado por Madalena Taborna, um muito bonito licro editado pela Assembleia da República.
Rita Taborda Duarte é uma das duas filhas do escritor Mário de Carvalho, a outra é Ana Margarida de Carvalho e pode-se lembrar o provérbio popular de que filhas de peixe sabem nadar.
«Por isso quando nasci, o meu pai viu-me, pela primeira vez, à distância de um vidro baço e grosso que nem por nada se quebrava: a PIDE (Polícia Incrivelmente Destituída e Estúpida) mantinha-o preso no forte de Peniche, em frente ao mar. Tanto mar, tanto mar…»
Um livro bonito e comovente, com histórias que metem pelo meio canções e poemas de Ary dos Santos, José Afonso, José Mário Branco, Lopes Graça, Sérgio Godinho, José Gomes Ferreira, Sérgio Godinho, Chico Buarque, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Ruy Belo, António Ramos Rosa, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill.
Por fim, dizer que esta maravilha de livro custa 8 euros e pode ser comprado na Livraria da Assembleia da República e, quando o forem comprar podem ter a possibilidade de conhecerem o Palácio de São Bento.
Sempre
Rita Taborda Duarte
Capa e Ilustrações: Madalena Matoso
Colecção Missão: Democracia-25 de Abril nº 8
Edições Assembleia da República, Lisboa, Abril
de 2024
E se em vez de ditar a
dor,
pudéssemos soletrar uma
flor?
Er a um país infeliz dividido entre o mar e a guerra, entre a bondade e a bruma. Queria-se um país futuro onde fosse a vida possível, mas a cada passo dado regressava-se ao passado. Em suma, nesse tal país, o dia parecia ser noite, ainda que despontasse a manhã. Ao hoje seguia-se o ontem: nunca mais chegava amanhã.
Lindo
e subtil trançado, que ficaste
em penhor do remédio que mereço,
se só contigo, vendo-te, endoideço,
que fora cos cabelos que apertaste?
Aquelas tranças de ouro que ligaste,
que os raios do Sol têm em pouco preço,
não sei se para engano do que peço,
se para me matar, as desataste.
Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
e por satisfação de minhas dores
como quem não tem outra, hei-de tomar-te.
E, se não for contente o meu desejo,
dir-lhe-ei que, nesta regra dos amores,
por o todo também se toma a parte.
Luís de Camões em Sonetos
Gonçalo M. Tavares
Legenda:
fotografia de Rui Ornelas
Euro 2024
Quando eu era pequeno e jogava
futebol de manhã à noite, havia uma espécie de jogador odiado por todos: era o
dono da bola. O dono da bola era o mais rico de todos mas, invariavelmente, dos
que pior jogavam. E, assim, volta e meia, para se vingar da sua falta de jeito,
o dono da bola agarrava nela, ia-se embora e acabava o jogo. Ele era o dono da
bola e, por, isso, tinha o privilégio de nos poder roubar a a bola e acabar com
o jogo. Assim se compensava da sua impotência.
Autor desconhecido
1.
Cerca de 5 mil profissionais do Serviço Nacional de Saúde deverão
aposentar-se este ano, estima a direcção executiva do SNS.
2.
Paul Auster
Criou um estilo, foi uma estrela e retirou-se quase em silêncio, escreveu
o Público na sua 1ª página.
Também no Público, mas a 5 de Maio, Rogério Casanova:
«A morte de Paul
Auster teve direito a chamada de capa nos quatro principais jornais diários
nacionais, incluindo o Correio da Manhã, apesar de o autor
norte-americano ter falecido após doença prolongada na sua casa em Brooklyn e
não atropelado por um tractor em Penalva do Castelo.
O fenómeno não é inédito, mas é suficientemente raro (e normalmente reservado
para Saramagos ou Garcias Márquez) para tornar insatisfatórias as respostas
mais comuns à pergunta: “Porque é que isto é capa de jornal?” (Dia calmo? Voto
evangélico? Neoliberalismo?)
3.
Vinte anos depois do Euro 2004, as câmaras que investiram na construção e na requalificação de estádios ainda devem 22 milhões de euros de empréstimos e sentenças judiciais, avança, o Jornal de Notícias. O município de Leiria tem a maior fatia em dívida (10,9 milhões), seguindo-se Coimbra com seis milhões e Braga com cinco milhões de euros ainda por saldar. Neste momento, as câmaras procuram aliar a atividade desportiva à sustentabilidade financeira, com o arrendamento de espaços a empresas e a instituições públicas a ajudar a rentabilizar, mas as situações não são todas iguais.
4.
A segurança social tem 50 inspectores para fiscalizar 2606 lares de
idosos registados, e existem para realizar as inspecções 22 viaturas, das quais
17 têm uma média de 24 anos de utilização e nunca estão todas operacionais.
5.
O número de pessoas em casas sobrelotadas aumentou quase 40% em 2023, o
maior salto em 20 anos; a renda mediana das casas fixou-se em 7,71 euros
por metro quadrado no último trimestre de 2023, mais 11,6% que no mesmo período
de 2022; infiltrações de água, humidade e mau isolamento térmico são
problemas que afectam cerca de 30% das casas dos portugueses.
6.
«O 25 de Abril não é hoje o que
sonhávamos? Sem dúvida, mas só as utopias nunca concretizadas é que não nos
desiludem, e o que temos é demasiado precioso para não o celebrarmos e,
sobretudo, para o defendermos…»
Esther Mucznik
Stuart
Catálogo da exposição de Stuart realizada no Palácio dos Corucheus
Maio/Junho de 1982
Programa e Organização de Paulo Madeira Rodrigues
Edição da Câmara Municipal de Lisboa, 1982
De dezenas de milhar de originais
que Stuart desenhou, descuidadamente, em qualquer papel, em casa sobrea a
prancheta, ou em mesas e balcões de café e tabernas de acaso, traçados a caneta,
a lápis, a carvão de pau de fósforo queimado ou palito mastigado e molhados em
saliva, borra de café ou de vinho, restam realticamente poucos. A maioria
perdeu-se no lixo das redacções, nas limpezas negaligentes de arquivos, nos
arrumos de estantes e de bibliotecas. REunem-se, agora, pouco mais de três
centenas para realizar a «exposição possível» e a homenahem há muito devidas ao
artista.
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«Não vou aqui me gabar – mas vi Luzes da Cidade mais de vinte vezes. Aliás não
seja por isso porque Otávio de Faria viu mais de trinta.»
Vinicius de Moraes
António Victorino de Almeida
Edições O Jornal, Lisboa, Novembro de 1981
Qualquer
semelhança
entre este
livro
e uma
garrafa
é pura coincidência.
Ainda que este livro não deva ser,
de modod algum, uma daquelas autobiografias grotescas em que o autor relata
toda a sua história desde a idade das fraldas, não posso deixar de citar a data
triste da minha infância em que – motivado pela circunstância de meu avô dormir
de braçaos abertos – pretendi crucifica-lo no colchão, chegando a cravar-lhe
uma cavilha na mão esquerda.
Está velho e cansado.
De quê?
Não sabe responder.
Repete muitas coisas. No meio das
conversas já esquece o que estava a dizer.
No recorte que hoje para aqui trouxe, lembrou uma canção de Brel. Uma canção de que por aqui já falou que é a versão dessa canção na voz de Nina Simone.
Repete muitas coisas, escreveu atrás.
Mas relê agora que nesse texto prometeu que um dia traria a versão da Maysa Matarazzo.
Esqueceu-se.
Mas fica agora.
Este anúncio foi publicado no Diário de Notícias de 30 de Março de
2002.
Hoje, o mundo do pequeno anúncio é, completamente, diferente: apelam a call
girls, a carl boys, a massagens a isto, aquilo e aqueloutro.
Um tempo houve que os anúncios, principalmente os do Diário de Notícias revelavam pessoas à procura de outras para convívio,
para refazerem uma vida, pessoas invadidas por uma solidão, a que,
desesperadamente, queriam fugir.
«Sou divorciada, 36 anos e dois filhos.
Procuro companheiro livre, formado e culto para juntos construirmos a
felicidade a que temos direito».
«Separado, 48 anos, grande solidão, posição estável, pretende senhora para convívio».
Fugir à solidão, tentar, ainda, uma gota de felicidade, por vezes nem
felicidade é, apenas um aconchego…
Que faz correr esta gente cansada? Donde vem esta gente tão só? Que sabemos nós? Que desígnios, situações, circunstâncias os levaram até aqui?
O vazio. A lucidez deste hábito. Nascer é inaugurar a solidão. Será?
Há prédios no centro de Lisboa onde apenas vive um idoso, o resto são
escritórios.
Quando a pessoa se dá conta que está sozinha vai para o hospital. Não diz que está sozinho, diz que está doente. Os serviços hospitalares têm destes casos todos os dias.
E estes são os que ainda podem sair de casa. Outros… bom... outros...
Quantos milhares de idosos vivem sozinhos em Lisboa? E ali? E acolá?
Em 2023 estimavam-se 575 mil idosos a viver sozinhos.
Saber administrar a solidão…
Perguntaram a um pastor se ele não se aborrecia de estar ali, dias e dias, com as ovelhas e mais nada.
«Não, não me aborreço porque as ovelhas às vezes bolem…»
A solidão que não pára de crescer…
Não me deixes
Oferecer-te-ei
Pérolas de chuva
Vindas de países
Onde nunca chove
Não me deixes
Deixa-me ser
A sombra da tua sombra
A sombra da tua mão
A sombra do teu cão
Não me deixes…»
Cesare Pavese
Na Alemanha, começou hoje o Mundial de
Futebol.
Sejam bem-vindos ao tempo em que todos os dias são domingo.
De, hoje até 14 de Julho e não se falará de mais nada.
Aliás, já há muitas semanas, que
não se fala de outra coisa.
As televisões encharcam-nos as horas,
com todas as incidências por que passa a selecção nacional.
Uma verdadeira náusea, um espectáculo absolutamente patético.
É óbvio que o futebol não tem culpa de ser um belo espectáculo.
Hoje, como ontem, sempre foi mais fácil um miúdo encontrar uma bola do que um
livro.
Mas nos dias que correm, não há pai que não sonhe que o filho venha a ser: não
um médico, um canalizador, um advogado, um carpinteiro, mas sim um Cristiano
Ronaldo.
Carlos Drummond de Andrade dizia:
«Bem aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois
deles é o reino da tranquilidade.»
Ele sabia bem do que falava!
1.
O selecionador Roberto Martínez disse
que o grupo está pronto para disputar a fase final da competição, prometendo uma
viagem rumo a Fátima em caso de título, embora não a pé, uma vez que "pode
ser muito difícil".
2.
Ontem, no interior do hotel durante a
cerimónia protocolar de receção à chegada dos jogadores estava prevista a
actuação do rancho folclórico das Lavradeiras de Gutersloh mas a
UEFA impediu e mandou retirar os elementos do local por não haver segurança suficiente.
3.
A poucos dias do primeiro jogo no Euro
2024, Portugal estreia-se em terras germânicas, na manhã desta sexta-feira, com
um treino no estádio do FC Gutersloh. O momento será seguramente de festa e
euforia, mas a distribuição dos convites gratuitos tem provocado polémica na
pequena cidade alemã. As cerca de 8200 entradas disponibilizadas para o evento
foram alocadas em poucos minutos, com a procura a ultrapassar largamente a
oferta. Com uma forte comunidade portuguesa no país anfitrião da competição,
muitos dos bilhetes terão sido entregues a alemães, com queixas de responsáveis
locais.
Além disso, com o aproximar do tão
cobiçado treino, os convites gratuitos têm sido colocados à venda por centenas
de euros – com uma publicação entretanto apagada a pedir mil euros pelo
ingresso.
A Funda
2º Volume
Artur Portela Filho
Capa: Mendes de Oliveira
Moraes Editores, Lisboa, Novembro de 1972
«A estes ninguém os meteu em
autocarros.
São oitenta mil e foram eles que escreveram os
cartazes.»
Provam que a multidão pode
ser um acto voluntário.
Provam que o entusiasmo pode
ser um acto espontâneo.
A diferença entre a política
e a sociologia chama-se Benfica. Um Benfica é o que é – indústria do músculo. Fábrica
de chutos, catedaral de taças – e mais aquilo que nada mais consegue unir.
O Benfica foi inventado para
substituir a Política.
Agora, que a Polítca quer
regressar, encontra o lugar tomado. 80.000 lugares tomados.
Não contem os dias caros senhores.
Há coisas mais urgentes do que embalar o tempo em plástico
alveolar. É por aí que as horas fogem à palavra já,
esta palavra urgente até ao ínfimo segundo. Cada bolha
seria um ano mais de ditadura. Não vos dói o coração dos outros?
A boca parada da vida obriga-me a palavras como já e nunca mais.
São palavras de andar, têm um corpo muscular de sim,
músculos de acelerar a revolução enquanto os caros senhores
olham as canetas azuis com que se mata a literatura em nome
de qualquer coisa que não é decerto um livro que julgávamos
irremediavelmente publicado. Caros senhores, com abril a revolução
não teve um fim, teve um início que já tinha começado
antes de estiar as nossas vidas.
Não contem dias inúteis. A matemática habita o já
e a liberdade pode perigar no dedo mindinho, ou num capilar
de desatenção. A palavra do agora-sempre é revolução.
A palavra do aqui é já, um já modelado com alteres,
e ainda assim minúsculo para tanto exercício cardiovascular
sem necessidade de aquecimento.
A letra “J” é uma coluna que marcha à procura da letra “à”
e encontram-se numa fonte de cravos onde as gentes
bebem à porta da cidade morena, atravessada a noite
das prisões. Mas há sempre uma mão alheia a trabalhar na sombra
e melhor do que contarem as horas é vigiarmos nós o sol
para que nasçam sempre cravos, sempre o vermelho insanguíneo
da liberdade. A revolução é a única melodia do amanhecer.
Nota do
Editor: Este poema de Rosa Alice Branco foi tirado do Público de 23 de
Maio de 2004.
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.