terça-feira, 25 de junho de 2024

DOS ANOS SETENTA

Voltar aos anos setenta
como se fosse possível
essa melodia lenta
transpor às cegas o nível
da realidade obtusa
do dia morno que passa
e escutar a semifusa
dessa década tão baça
que em ti se prolonga hoje
à medida de ninguém
febre que agora te foge
primavera que não vem
Ano de setenta e dois
o teu irmão a morrer
breve despiste e depois
cada dia outro dever
outra missão a cumprir
em secretos rituais
a vida inteira em devir
menos por menos dá mais
Ano de setenta e quatro
com revolução em abril
e todo um novo teatro
no teu drama juvenil
em anos adolescentes
soturnos introvertidos
Já não sabes o que sentes
fantasma de tempos idos
sombra a passar num só flash
filme que já não existe
por onde quer que hoje vás
tens razões para ser triste
Anos setenta talvez
à espera do infinito
silhuetas que mal vês
agitadas em conflito
Tudo era esquerda ou direita
em conspirações de bares
e na noite mais suspeita
movimentos militares
Copos fumos atmosferas
o Botequim o Procópio
e tu sem saber quem eras
coração-caleidoscópio
Socialistas comunistas
PPD e CDS
deputados nomes listas
e mais partidos que houvesse
Cunhal Soares Sá Carneiro
inesperada companhia
era teu aquele cheiro
de um país que ali nascia
Primeiros dias do mundo
a acontecerem em ti
e essa memória sem fundo
a iludir-te hoje aqui
Ano de setenta e sete
dizer adeus a teu pai
tudo o que a vida promete
mas de súbito se esvai
Fotografias cinzentas
golas altas bandas largas
entre as imagens que inventas
certas dívidas não pagas
Helmut Schmidt Giscard d’Éstaing
ou Kissinger e Brejnev
a preto e branco em écran
de harmonia semibreve
na exausta guerra fria
em que tudo se explicava
e o planeta se movia
numa corrente de lava
Anos setenta obscenos
primeiras pornografias
menos por mais dava menos
cassetes que descobrias
e alimentavam isso
a que chamavas o sexo
coisa mágica feitiço
espelho côncavo ou convexo
Anos setenta no fim
de uma infância que te amava
memória em forma de assim
cadência que nada trava
Cinquenta anos depois
tudo é tempo tudo é nada
sonho só do que não foi
longe dessa madrugada
como se o mar engolisse
os recados do destino
e fosse agora tolice
repassar a pente fino
os vãos sinais desses anos
entretidos à procura
dos sintomas mais insanos
humanos ou trans-humanos
ou a última loucura
que é ficares assim absorto
nessa miragem impura
a olhar para o vazio
talvez vivo talvez morto
com uma cidade a teus pés
Ainda saberás quem és?
E esse rio que vês no Porto
ainda é o mesmo rio


Fernando Pinto do Amaral

Nota do Editor:  Este poema de Fernando Pinto do Amaral foi tirado do Público de 17 de Abril de 2004.

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução. 

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