segunda-feira, 11 de julho de 2022

MINHA MÃE NO CORAÇÃO

“Tudo nesta vida me lembra um filme; 

é qualquer coisa que não consigo evitar”

(Jonathan Coe – “O Sr. Wilder & Eu”

 

Ainda bem que Jonathan Coe me compreende…

Não apenas lembrar um filme, mas também todo o contexto que rodeou a sua visão.

Não me basta recordar que foi há 50 anos que vi, pela primeira vez, o “King Kong” numa sessão da meia-noite do Cinearte. Vem-me também à memória, de imediato, tudo o que se passou antes, durante e depois do filme, e acima de tudo uma voz que passou a noite toda a soprar-me ao ouvido “morrer de Amor como o King-Kong”, frase que sei muito bem ter sido roubada a Eduardo Guerra Carneiro, o que, para o caso, não faz qualquer diferença.

Por isso, a conversa de hoje não será sobre filmes, mas sim acerca de tudo quanto os rodeou.

Muito cedo na minha vida me dei conta de que não haveria maior prazer que ver-me sozinho no escuro de uma sala de Cinema.

Quando passei, com sucesso, nos exames do então 2º Ano Liceal e tive direito a uma prenda especial, pedi ao meu Pai que me desse dinheiro para ir uma vez por semana ao cinema durante as férias de Verão.

E assim foi… Um autêntico festim!

Ainda estava muito longe de ser o “cinéfilo” que sou hoje, mas ver filmes antigos a preto e branco era coisa que não me assustava nada. Estava habituado a vê-los na televisão…

Lembro-me de ter ido ao Condes ver, em reposição, “A Relíquia Macabra”, muito antes de saber quem era John Huston, Humphrey Bogart, Sidney Greenstreet ou Peter Lore. Ou, no Tivoli,  “Os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras”, esse bastante mais recente, em ecrã largo e a cores.

Mas onde ia mais vezes era ao Avis, que ficava mais perto de minha casa. Lembro-me de ter visto aí (e só muito mais tarde os pude identificar…) “A Torre de Londres”, do Roger Corman e o “Inferno Verde”, do James Whale, que hoje já se podem considerar “clássicos”.

Em boa verdade, não fazia nem sabia fazer grande seleção e ia ver o que estivesse disponível para a minha idade, já que o meu maior prazer era o de me sentir sozinho naquelas salas escuras defronte de um ecrã de cinema.

Antes disso ia ao Cinema muito raramente, e sempre acompanhado.

A primeira vez com a minha Prima Lena, como já contei.

A segunda  foi com o meu irmão José Carlos, também no Monumental e também para ver um filme de Walt Disney, “A Branca de Neve e os Sete Anões”.

Foi nessa ocasião que se passou uma célebre cena da qual me recordo perfeitamente e com a qual tramei o meu Querido irmão.

Essa história, que tantas vezes recordei na presença dele, deixem-me contá-la uma vez mais, como se ele permanecesse aqui a meu lado a olhar-me de novo com aquele ar de censura que sempre punha no rosto quando eu falava dela.

Tínhamos ficado no balcão e a meu lado ficara sentada uma rapariga mais ou menos da idade do meu irmão, que, por sua vez, estava a acompanhar um miúdo que também deveria ter a minha idade.

O meu irmão, que tinha fama de “Don Juan”, pediu-me ao intervalo para eu regressar à sala antes dele e me ir sentar no lugar dele, de forma a que ele, chegando mais tarde, fosse obrigado a sentar-se no meu, ou seja, ao lado da menina. O que iria ele fazer depois, não faço a mais pequena ideia…!

O certo é que eu, mauzinho, regressei primeiro do que ele à sala, como tínhamos combinado,  mas fui sentar-me de novo no meu preciso lugar, ou seja, ao lado da menina. Pouco depois entra o meu irmão, vê que eu não mudei de lugar, fulmina-me com o olhar e vai sentar-se no seu lugar, já que não havia outro… Quando as luzes se começaram a apagar e o pano a subir, eu levanto-me no meu lugar, viro-me para o meu irmão e digo-lhe bem alto: “Zé Carlos, tu que querias ficar ao lado desta menina podes passar para aqui…!”. Não deu para ver porque, entretanto, as luzes se apagaram e o filme recomeçou, mas imagino a reação dele e da menina…

No final do filme o meu irmão, certamente envergonhado, esperou que a menina e o miúdo saíssem primeiro e deu-me um tremendo raspanete, jurando que era a última vez que vinha comigo ao cinema. 

Mentira, porque uns tempos depois levou-me ao “Império” ver “Há Festa na Aldeia” e contribuir, em muito, para a minha eterna devoção ao Jacques Tati…

Mas porque fui eu fazer, com tão tenra idade, aquela maldade ao meu irmão…?  É um verdadeiro enigma… Manifestação precoce de uma característica que alguns amigos, ainda hoje, persistem em me apontar frequentemente, sobretudo quando lhes dou algumas bicadas acerca dos atuais grandes sucessos desportivos do seu Benfica: a de ser um “cabrãozinho pequenino”…?

Mas a verdade é que depois do Jacques Tati não me recordo de ter voltado a ir ao cinema com o meu irmão Zé Carlos.

Sozinho com o meu irmão Jorge nunca fui e apenas me recordo de ter ido uma vez com ele e com os outros dois irmãos ao Roma, ver “Mocidade em Férias”, com o Cliff Richard. Isto para não falar daquelas duas ou três vezes em que, no Verão de Paço d’Arcos, os meus irmãos terão sido obrigados a levarem-me com eles ao cinema. 

Com a minha irmã fui muitas vezes, mas bastante mais tarde, entre os meus 14 e 16 anos,  quando ela, já empregada, me levava ao Domingo às sessões duplas do Paris, ali para as bandas da Estrela. Gloriosas tardes essas em que eu tinha pretexto para me baldar ao “passeio dos tristes” com os meus Pais, ver dois filmes e ainda comer um gelado ou beber um Sumol de ananás. A chatice é que tínhamos de ir e vir de autocarro e só às vezes, no regresso, vínhamos de táxi, mas apenas quando corríamos o sério risco de desrespeitar o sagrado dever de estarmos sentados à mesa às 20h00 para jantar, de mãozinhas devidamente lavadas. 

Mas que magníficos filmes vi eu nesses Domingos à tarde, na companhia da minha Querida irmã Rosa Maria! Entre tantos outros, a primeira versão de “O Grande Mestre do Crime”, “A Festa”, com o Peter Sellers, “Bullit”, com o Steve McQueen a voar  nas colinas de São Francisco, “O Passageiro da Chuva”, do René Clément, e muitos outros policiais franceses dos anos 60, que à época estavam na moda. 

Na altura não havia vídeos e, muito menos, DVD’s, e os filmes modernos só passavam na televisão muitos anos depois. Mas era normal passarem nesses “cinemas de reprise” poucos meses após a sua estreia. 

Mas porque razão íamos nós tão longe ao Paris, quando tínhamos, bastante mais perto de nossa casa, idênticas “salas de reprise”, como era o caso do “Liz” ou do “Imperial”…? É um enigma para mim, mas imagino que talvez o meu bom Pai tivesse dito à minha Querida irmã que meninas bem comportadas não frequentavam aquelas bandas da Almirante Reis…    

Com o meu Pai não me lembro de ter ido uma única vez ao cinema. Aliás, guardo na memória que vi o meu Pai ir uma única vez ao cinema e na companhia dos meus irmãos, ver um documentário que então era muito badalado e se chamava ”O Mundo Cão”. E a verdade é que o meu Pai só se terá decidido a ir porque lhe tinham contado que havia uma cena em que o Nuno da Salvação Barreto, que então capitaneava o Grupo de Forcados Amadores de Lisboa, pegava pelos cornos um touro em pontas…

Com a minha Mãe lembro-me de ter ido, apenas, duas vezes ao cinema.

A primeira vez foi para ver “Música no Coração”.

Para os espectadores de cinema de hoje, em que os filmes se aguentam muito pouco tempo em exibição comercial e num ápice saltam para os ecrãs de televisão e para o DVD, em que há filmes que nem sequer para o “grande ecrã” vão e são produzidos e lançados diretamente nas grandes plataformas de “streaming”, será muito difícil perceber um fenómeno como foi, em Portugal, “Música no Coração”.

Em Lisboa o filme estreou-se no “Tivoli” em Janeiro de 1966, tinha eu acabado de fazer 12 anos e, se a memória não me falha, manteve-se em exibição consecutiva durante 9 meses. Impensável nos dias de hoje…

Não se falava noutra coisa. Sobretudo na “conversa das Senhoras”…

Por uma qualquer razão, a minha mãe (que raramente ia ao cinema, diga-se de passagem…) terá perdido a oportunidade de ir ver o filme com uma das suas amigas, deixou-se arrastar e quando, finalmente, se decidiu, eu era a única pessoa que ela tinha mais à mão, já que sozinha jamais se atreveria a ir.

Eu devo ter torcido o nariz, porque já na altura devia ter alguns laivos de pretensiosismo e pensado que filme tão badalado pelas “Senhoras” não deveria ser, certamente, flor que se cheirasse.  Mas como ir ver um filme à borla e lanchar uma bola de Berlim e um “Sumol” de ananás também não era coisa que se recusasse, lá me disponibilizei a ir sem grande regateio. A não ser essa tal exigência do lanche, claro está…

Mas não adivinharia que a cena iria ter uma preparação prévia…

Segundo ela então me contou, a minha Mãe fora uma vez ao cinema com o meu irmão Zé Carlos, quando ele ainda era miúdo, ver um dos filmes da “Sissi”. O primeiro filme dessa trilogia estreou-se em Portugal em Outubro de 1956, pelo que o meu Querido irmão teria, no mínimo, 12 anos acabadinhos de fazer.

E parece que numa cena de beijos o meu Querido irmão, que tinha fama de malandreco, terá armado um escarcéu de todo o tamanho, assobiando, batendo palmas, largando “bocas”, eu sei lá, deixando a minha pobre Mãe passar uma autêntica vergonha em plena sala de cinema.

Eram tempos em que ainda não tinha chegado a televisão e a miudagem ainda não estava habituada a cenas dessas…

Mas a minha Mãe terá ficado de tal maneira traumatizada com essa fita do meu irmão que que a primeira coisa que fez, quando se decidiu que iriamos os dois ao cinema, foi fazer-lhe jurar que me portaria convenientemente se no filme houvesse alguma cena dessa natureza.

Ofendido, ter-lhe-ei respondido que já era um espectador de cinema muito batido e que cenas dessas papava eu todos os dias ao pequeno-almoço…

Agora já não me recordo, mas é altamente provável que, durante o filme, haja pelo menos uma cena de decente beijocada entre a perceptora das crianças e o Capitão Von Trapp.

E também não quero estar aqui a inventar, mas é muito provável que, a existir essa cena, a minha Mãe e eu tenhamos trocado o olhar e eu lhe tenha dado uma piscadela de olhos, em sinal de cumplicidade.

Depois disso, só voltei ao cinema na companhia da minha Mãe aí uns 15 anos depois, para lhe apresentar a namorada com quem me preparava para casar. Foi no Condes, para ver o “Rebeca” do Hithcock, filme de que ela gostava muito e do qual me falava frequentemente.

Constato agora que isto já vai muito longo e que, em boa verdade, eu já dei volta às minhas memórias cinéfilas de infância e já vos contei tudo quanto vos tinha para contar… 

Mas apercebo-me que tenho de arranjar algum pretexto para vos ter vindo aqui massacrar com toda esta lenga-lenga. E, uma vez mais, recordações de viagens é o que está mais à mão…

Não foi a pensar na minha Mãe nem em “Música no Coração” que visitei, por duas vezes, Saltzburgo, na Áustria, mas também não se pode visitar essa cidade, nem toda essa magnífica região dos Lagos que lhe é tão próxima, sem que sejamos invadidos pela memória desse filme.

Os miúdos na ponte com a Fortaleza de Hohensaltzburg ao fundo…

Os miúdos a dançarem no Schloss Mirabell , defronte da casa amarela onde viveu Mozart…

Os miúdos no comboio a vapor, pela montanha acima…

Julie Andrews a esvoaçar no alto da montanha…

A igrejinha do casamento…

Mas se é verdade que não fui a Saltzburg de propósito por isso, também é certo que não deixei de levar bem viva no coração e no olhar a memória da minha Querida Mãe. O que ela gostou das paisagens desse filme e o que ela não daria para ter ido oportunidade de as ver pessoalmente, ela – coitada…! - que de viagens ao estrangeiro a única coisa que levou desta vida foi fazer “tricot” nas diversas cidades de Espanha em cujas praças de toiros o meu pai poisava o seu traseiro.

E ainda hoje, ao ver uma cena de beijos, por vezes me recordo da minha Mãe. Dou-lhe uma piscadela de olho e tenho a certeza que, esteja lá ela onde estiver, não deixará de me responder com um sorriso…   

 

Texto e Fotografias de Luís Miguel Mira

2 comentários:

Seve disse...

Este belíssimo texto do Luís Mira deixou-me, sei lá -nem sei explicar...angustiante nostalgia.
Não me lembro da primeira vez que fui ao cinema mas sei que não foi com a minha mãe, nem com o meu pai que, curiosamente, tinha, ele e um seu sócio, um cinema ambulante e andavam pelas aldeias do Alentejo (onde nasci) a passar os filmes que tinha (em bobinas). Lembro-me de ele me contar várias peripécias que nesta "aventura" lhes acontecia. O meu pai falava pouco comigo (como era comum na altura) e muito menos desta sua época (ainda solteiro), mas lembro-me de ele falar num filme que gostava muito (O FARRAPO HUMANO) e falava-me dos seus dois actores preferidos (Spencer Tracy e Charles Laughton). Esta conversa tinha aqui pano para mangas. Serve também para homenagear as mulheres daquela altura quais escravas sabiam lá o que era ir ao cinema...pelo menos a minha mãe e as dos meus amigos da altura.

Anónimo disse...

Caro Seve,
Um Pai exibidor de cinema ambulante é um privilégio...!
"O Farrapo Humano", do Billy Wilder, é um grande filme, mas jamais pensaria nele para o recomendar a uma criança, a não ser que quisesse precaver problemas futuros...!
Tracy e Laughton, dois dos maiores de sempre do cinema americano. Difícil escolher um só filme, mas de Tracy vem-me logo à memória o maneta de "A Conspiração do Silêncio / Bad Day At Black Rock" . De Laugthon o realizador de um dos mais belos filmes do cinema "tout court", "A Noite do Caçador"
Obrigado pelo seu comentário.
LM