sexta-feira, 27 de setembro de 2024

HÁ SEMPRE UMA ABÉBIA PARA DAR O FROSQUE


 Por Outubro aparecia nas livrarias um novo livro de António Lobo Antunes.

Como por aqui fui escrevendo, há muito que deixei de ler romances seus, ele que tanto me entusiasmou. As últimas palavras que dele gostava de ler, encontram-se nas crónicas que publicava em jornais e revistas, depois reunidas em livro. Mas já há algum tempo que nada disto acontecia.

Soube agora que António Lobo Antunes, por a demência o ter atingido, não mais escreverá.

Em 2016 publicou Para aquela que está sentada no escuro à minha espera.

José Cardoso Pires, grande amigo de Lobo Antunes, escreveu, Janeiro de 1997, no seu De Profundis, Valsa Lenta:

«Como despedida, a festa anunciada parece-me uma vinheta mas, se me é permitido, acrescento-lhe um fio de música.»

Conheci o escritor António Lobo Antunes através de uma entrevista que o jornalista Carlos Miranda publicou no jornal A Bola, 1980.

Comprei então Memória de Elefante, publicado pela Vega, e largamente, durante anos e anos, fui um entusiasta leitor.

«São cinco da manhã e juro que não sinto a tua falta. A Dóri está lá dentro a dormir de barriga para cima, de braços abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, avança e recua ao ritmo da respiração num ruído húmido de ventosa. Bebemos ambos a aguardente da cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na cama que o gás de guerra tornou inabitável carbonizando até as folhas estampadas das fronhas, escutei-lhe as confidências prolixas, enxuguei-lhe o choro confuso que me tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o cobertor até ao pescoço à laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Está frio, as casas e as árvores nascem lentamente do escuro, o mar é uma toalha cada vez mais clara e perceptível, mas não penso em ti. Palavra de honra que não penso em ti. Sinto-me bem, alegre, livre, contente, oiço o último comboio lá em baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da cidade ao longe, desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se eu tivesse telefone e me telefonasses agora deverias encostar cuidadosamente o auscultador à orelha numa expectativa de búzio: através das espiras de baquelite, vindo de quilómetros de distância, desta varanda de betão suspensa sobre o fim da noite, terias, juntamente com o eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu silêncio, o piano amortecido das ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.»

1 comentário:

Seve disse...

Há muitos muitos, anos li dois livros que me entusiasmaram, este (Memória de Elefante, e Conhecimento do Inferno).
Tornei-me um leitor fiel do ALA, julguei eu, só que depois destes dois fui absolutamente incapaz de ler mais algum, não consegui, incapaz é o termo correcto.
Todavia continuei a ler AS CRÓNICAS (os livros de crónicas) com imenso prazer.
Leio agora com tristeza que a demência se abateu sobre ele. Apesar da minha incapacidade para o continuar a ler julgo que é uma grande perda para a literatura.