terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

CRONICANDO POR AÍ

«Compreendo o silêncio de Benfica e Sporting perante a morte de Pinto da Costa. Ensaiei na minha cabeça várias reações oficiais, e todas tinham o mesmo problema. As palavras queimam e perseguem-nos quando são mal escolhidas. Seria estranho resumir a duas linhas de circunstância uma reação quando há tanto por dizer, se quisermos ser sinceros. Uma instituição deve representar os seus membros, e seria difícil, provavelmente inadequado, ser uma extensão do que estes pensam no momento atual.

É complicado encontrar algo estruturalmente positivo para dizer acerca de Pinto da Costa, alguém que, com ocasional elegância, irónica souplesse e a tal cultura acima da média que o tornou uma referência entre filisteus, fez do ódio aos rivais uma figura de estilo amplamente apreciada. Tanto que produziu efeito como cultura e forma de estar. Tanto que foi copiada por outros dirigentes, inclusive no meu clube.

Já aqui escrevi que o ex-presidente do FC Porto inventou um clube, mas aquilo que fez, e sobretudo o modo como o fez, alastrou-se em forma de doença. Mais do que uma identidade clubística, a cultura materializada por Pinto da Costa tornou-se um padrão a seguir, a forma correta de fazer as coisas. Essa foi a sua maior conquista enquanto protagonista. Quantas vezes ouvi pessoas justificarem práticas dúbias no futebol com expressões como «as coisas têm de ser assim», «não podemos ser anjinhos», porque, se assim for, «vamos ser comidos», recorrendo às palavras históricas de José Maria Pedroto. O futebol português permitiu que se consensualizasse a ideia de que os «bons rapazes» são comidos e que só os maus ganham. Patrocinou uma nova era de competições em que essas eram as regras do jogo.

Posso recuar até à minha infância. Não me lembro de outro futebol competitivo em Portugal. O que hoje acontece assenta na seguinte dialética: as vitórias dentro de campo nunca são apenas isso. Desde que me recordo, assisto a uma engrenagem imparável de operações nos bastidores, negociatas estranhas, nomeações inexplicáveis, decisões escandalosas, personagens sinistras, critérios desiguais e, no final de tudo, uma série de platitudes proferidas pelas lideranças sobre um desporto aparentemente imaculado. Porque toda a gente tem contas para pagar, a vida continua e o povo mantém-se interessado. O povo, aliás, abraçou tudo isto como parte da diversão.

Criou-se uma nova camada de entretenimento em torno da trama, com muitos vilões, todas as suspeitas e nenhum culpado. Se o termo «verdade desportiva» ganhou relevância, é porque muitos precisaram dele para expor as mentiras em que o futebol português labora, e também porque tudo isto se tornou parte de uma discussão, o mal a combater enquanto parte de uma sociedade do espectáculo. A distinção entre licitude e ilicitude perdeu-se pelo caminho. O que sobra é uma construção social aceite por todos, onde a esperteza e a manha são tão importantes quanto o atleticismo e a vontade de competir.

Eu vejo um legado indissociável de Pinto da Costa e uma herança deixada a todos os que não o aplaudiram com fervor religioso: um futebol em que quase ninguém aceita o resultado final de um jogo, um desporto seguido apaixonadamente por milhões, mas no qual poucos acreditam piamente no que veem. Por muito que se elogie esta indústria pelos seus proveitos financeiros e desportivos, por muito que se reconheça que o desporto cumpre uma função social importante alheia à sua faceta mais pantanosa, o lugar em que o futebol nacional se instalou ao longo dos anos, naquilo que tem de mais doentio e antidesportivo, deve muito a Pinto da Costa. Foi ele quem demonstrou que era possível recorrer a quaisquer meios para atingir os fins pretendidos. Está para chegar o dia em que me sinto convencido de que essa cultura foi absolutamente erradicada do desporto e das principais esferas de decisão.

É natural que muita gente se sinta obrigada a dizer algo mais simpático neste momento. Aqui chegados, depois de tudo o que vimos ou deixámos acontecer com um piscar de olho maroto ou com um assobio para o lado, será mesmo altura de falar a verdade? Mais vale deixar ficar como está. Já passou. Esse foi um enorme mérito de Pinto da Costa: trabalhou nos corredores mais sombrios para vencer vezes suficientes. Fê-lo até conseguir cristalizar como verdadeiro e lícito, até admirável, aquele que foi o seu percurso no desporto. Por isso, se as últimas 72 horas nos mostraram algo, é que os adeptos de um clube não estão prontos para falar abertamente sobre o que se passou ao longo das últimas décadas. Arrisco dizer que nada mudará nesse capítulo, porque, muito antes de clamarmos pela verdade desportiva, já o então presidente do FC Porto mostrava o seu engenho na prática da pós-verdade.

Hoje, parece não ter havido escuta que o desmentisse, da mesma forma que não parece haver pessoa capaz de convencer outra de que uma coisa azul é amarela ou de que a Terra é mesmo redonda. Para o que der e viver, o futebol continuará a ser, depois de Pinto da Costa, um ajuntamento de terraplanistas: uns porque negam o amplo corpo de evidências, outros porque a vida lhes continuará a dar motivos para desconfiar. Talvez seja só isso e não valha a pena aspirar a mais.

Eu percebo. Se um presidente do meu clube vivesse até aos 87 anos e, no entretanto, me tivesse permitido celebrar a conquista de duas Taças dos Campeões Europeus e duas Taças UEFA, eu também estaria grato e tenderia a ignorar o resto. Assim se explica que, após uma eleição que viu Pinto da Costa ser derrotado sem apelo nem agravo, o FC Porto apareça aos olhos do comum adepto de outro clube como uma entidade em profunda angústia existencial. Pudera. O presidente que inventou tudo isto deitou fora o manual. Um clube que durante 40 anos fez da corrupção, das agressões, do ódio aos «vermes que merecem desprezo», da intimidação e da violência, dimensões não escritas da sua identidade. Conseguiu até que tudo isto se tornasse socialmente aceite, uma espécie de mal necessário, uma excentricidade em forma de clube de futebol com a qual tínhamos todos que aprender a viver.

Compreendam por isso o silêncio oficial, sem elogios nem críticas. Compreendam também que os demais adeptos ou as instituições que os representam não sintam o mesmo carinho por esta pessoa que agora nos deixa. O respeito institucional pelo qual tantos clamam hoje não encontrou reciprocidade nos últimos 40 anos. Compreendam que os adeptos questionem as conquistas de um clube ou de um presidente quando estas foram manchadas por décadas de práticas antidesportivas. Compreendam que esses adeptos jamais venham a considerar imaculada uma herança deixada nestes termos.

Pinto da Costa fez tudo o que estava ao seu alcance para ser a melhor coisa que aconteceu aos portistas. Não tenho dúvidas de que conseguiu. No processo, tornou-se a pior coisa que aconteceu ao futebol português. Parece-me que viveu sempre bem com esta minha opinião. Paz à sua alma.»

Vasco Mendonça em A Bola de 18 de Fevereiro de 2025

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