quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

FAZIA HOJE 102 ANOS... SE AINDA POR CÁ ANDASSE... E QUASE NINGUÉM O LÊ!

«Nasci em 2 de Janeiro de 1923.

O horóscopo diz que Saturno me previu que a primeira mão que olhei directamente era de forma ainda hoje desconhecida.

Durante quase toda a minha infância fui perseguido pela presença constante antiquíssima máquina de costura que pretendia encontrar-se (e quando digo encontrar ponho, evidentemente, o caso do sexualismo actuante) com uma locomotiva que, de cabelos desgrenhados, uivava perdida no espaço. Daí as reminiscências, que ainda hoje tenho, da existência duma noite enigmática por onde eu caminhava exaustivamente, pisando rostos de crianças já mortas há séculos.»

Mário-Henrique Leiria em Fragmentos da Minha Vida Real

 

 «Nunca consegui perceber nada de coisa nenhuma, nem sequer de mim.»

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

«… e agora vou acabar de ler um bom e saudável romance policial e liquidar o resto da garrafa de vodka (“Bogka” para fingir que sei russo) que está ao alcance da minha mão direita (como bom deus pagão que posso perfeitamente ser, não tenho o “Filho” à mão direita, mas sim um objecto de maior libertação e realidade).»

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

Mário-Henrique Leiria, meu mestre de gin, e não só, amiúde dizia: «posso morrer de fome mas não peço esmola», ou ainda «para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

«Agora tenho de sair. A carta acaba aqui. Vou tentar angariar subsistência, que eu, às vezes, até tenho o vício de comer... calcula, vícios burgueses...

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos


Mário-Henrique Leiria nasceu a 2 de Janeiro de 1923 e morreu a 9 de Janeiro de 1980.

Há quem diga que morreu de fome, de prolongado abandono. O Luiz Pacheco não concordava e escreveu: «Não dei por tal. Da última vez que o visitei na Vivenda Xavier, em Carcavelos, estava doente, acamado. Mas dotado do humor mordaz que sempre lhe conheci. Rimo-nos muito, como de costume. Não viveria no luxo, tão-pouco caíra no lixo. Diminuído no físico, alerta e destro no espírito.» 

Jorge Listopad:

«Nada de Passadismos para os «Secos & Molhados», disseram-me.

Por isso hoje começo por Mário-Henrique Leiria que morreu há uma semana. Tão presente. Escritor e poeta que baralhou as cartas de todas as convenções, o humorista de origem melancólica, magíster da ironia mordaz e terna, ao observar o mundo como o fruto surrealista de coincidências artísticas, realmente muito «chateado» com a desordem da ordem.

Lisboeta, nasceu em 1923. Curriculum: Belas-Artes, não acabadas, movimento surrealista, marinha mercante, caixeiro de praça, metalúrgico, caminheiro (estradeiro, como diz Mário de Andrade), Europa Latina, Balcãs, Transibéria (?), Carcavelos,  Carcavelos-hospital.

Autor de poesia, de centenas de textos jornalísticos, de contos, cujo livro Contos do Gin-Tonic em 73, no último marcelismo, foi um best-seller pela qualidade e livre respiração.

Chegaram depois a sua casa e disseram-lhe:

- Mas você não consegue escrever coisas compridas! Isso que faz é uma miséria.

- Coisas compridas, como?

- Bem, romances, crónicas autênticas, ensaios sólidos.

.-Não, isso não sou capaz.

- Então você não é um escritor.

- Pois não. Quem se atreveu a chamar-me tal coisa?
- Desculpe. Mas uma coisa comprida, por favor, não arranja?

- Quando as coisas vão a ficar maiores, deito logo fora. Compreende, não é?


«Estava a jantar no PING-PONG com uma amiga realmente simpática.

Na altura do conhaque a acompanhar o café, lembrou-se de repente: «e se este fosse o último?»

Pediu mais outro conhaque, mesmo antes de acabar o que estava a degustar.

À porta, quando saía, o Tião Medonho atirou-lhe quatro de 38 exactas, abaixo do diafragma, e foi-se embora.

Isto de religião é uma coisa tremendamente complicada, sempre tenho dito. E a minha mãe confirma.»

Mário-Henrique Leiria em Contos do Gin-Tonic 

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