sábado, 21 de março de 2015

OLHAR AS CAPAS


O Que Diz Molero

Dinis Machado
Capa: Saldanha Coutinho
Livraria Bertrand, Lisboa, Setembro de 1977

«Último cliché do bairro, enquadrado na cidade, e esta no rio, envolvendo o segundo amor da sua vida, que o primeiro, esse terá sido, segundo apurou Molero, a Greta Garbo, temos um poema dedicado à menina Mariana, formosa e intangível, a mais fugaz e pudica das aparições lá numa janela alta, o seu Amor de Perdição, caiu nas mãos dele, certa noite, o romance de Camilo, leu-o de um fôlego, enfeitiçado pela maneira como uma simples história de amor pode assumir a grandeza, estava repleto de febre e de Simão quando rompeu a aurora», disse Austin, e fez uma pausa. «O poema diz: Há pombos esquecidos nas estátuas desta cidade naufragada. Mastros de sombra escrevem o teu nome e em cada letra reconheço a madrugada. Mulheres e homens, enlaçados de cansaço, dormem um sono fundo, com raízes. Das margens desse sono se levantam as pedras das palavras que não dizes. Foge o mar dos meus dedos entre a noite, e a noite é uma canção que te procura. Nos meus olhos ardem estrelas encharcadas que rodeiam de azul a tua altura. Cada esquina é um cais à tua espera. Faróis e candeeiros chamam por ti. Como um sonho deslizo e permaneço na rua da janela onde te vi. Finalmente os pombos largados, partindo desta estátua que tu és». Houve outra pausa. «Este poema», disse Austin, «intitula-se The High Window, germinou muito tempo dentro dele e foi escrito anos depois, quando começou a ler e a amar os livros de outro escritor, Raymond Chandler, homem triste cheio de humor, que criou uma espécie de herói de aluguer, labiríntico e algo macerado, a quem os outros serviam logo ao pequeno-almoço, e sem direito a notícia nos jornais, pontapés na boca do estômago misturados com traição».

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