domingo, 4 de dezembro de 2016

FALTÁMOS POR MOTIVO IMPREVISTO


Vezes sem conta, tentei arranjar bilhetes para ir ver as récitas das óperas que do São Carlos desciam até ao Coliseu, mas nunca consegui.

Sabia que os bilhetes eram distribuídos por aqui e por ali e os poucos que restavam eram postos à venda mas desapareciam num ápice.

Pela leitura da Alvorada de Abril do Otelo Saraiva de Carvalho fiquei a saber que Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar era uma das entidades a quem eram distribuídos bilhetes.

Aliás, por mera curiosidade, vale a pena recordar, em vésperas do 25 de Abril, as mirabolâncias operáticas do Otelo.

Otelo diz à mulher que chegou a hora, e se ela, no rádio, ouvir os sinais, é porque tudo está acorrer bem.

A mulher pergunta-lhe o que acontecerá se não ouvir os sinais.

Otelo responde-lhe:

Então, não sei ainda o que me poderá acontecer. Presumo que serei demitido, entregue à PIDE, passado a civil e vá aboborar por uns anos largos em Caxias ou, quem sabe, faça uma viagem só com bilhete de ida para o Tarrafal. Uma coisa te garanto: nunca mais farei guerra nenhuma no Ultramar.

E adianta:

O gracejo final fora chocho. Tinha a sensação de que o panorama se apresentava negro. Tentei dar-lhe uma pincelada de cor:
- Mas não te apoquentes com nada disso nem tenhas pensamentos desse género. Porque eu tenho a certeza de que, em poucas horas, ganharemos esta guerra. Dominamos quase todas as unidades do País, a malta está com uma gana formidável, temos a nosso favor o efeito surpresa. É canja!
Ela quis também dar ao ambiente um pequeno toque de humor:
- Queres então dizer com isso que amanhã não vamos à ópera?
Tinha-me esquecido completamente do assunto. Comprara bilhetes para a Traviata, que se cantava na noite de 24 no Coliseu dos Recreios, aproveitando o preço mais baixo que nos era facultado através da Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar.
- Olha, guarda-os para recordação. É claro que não vamos.
Com o permanente espírito de economia caseira retorquiu:
- Leva-os antes contigo e procura entregá-los amanhã na Academia. Pode ser que devolvam o dinheiro.
- Não vou fazer isso. Entregá-los agora depois de tanto os ter pedido, dizendo que já não me interessa, pode levantar qualquer suspeita. Paciência. Outra vez virá. Além disso, já vimos a Traviata do alto do galinheiro do São Carlos.
Ainda hoje tenho comigo esses bilhetes. No sobrescrito timbrado da Academia Militar dentro do qual mos entregaram, minha mulher inscreveria mais tarde a frase: "Faltámos por motivo imprevisto".

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