sexta-feira, 3 de setembro de 2021

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Uns trastes voltarão a bolsar:

«Ela fez dele, que era um labrego, um senhor. Se não fosse a Isabel, quem seria o Saramago, que nem sabia comer à mesa?»

Deixá-los ladrar!

Recorde-se dois textos por aqui publicados:

Um no dia 27 de Junho de 2015:

«As paixões acontecem, não se explicam.

Jorge Amado no seu livro memorialista, Navegação de Cabotagem:

«As reedições de meus livros saem iguais às primeiras, apenas as gralhas vão em constante aumento, Paloma, que os andou relendo para saber o que os personagens comem, me informa que os erros gráficos se contam aos milhares. Tampouco jamais buli nas dedicatórias, também elas datadas – mesmo em se tratando de pessoas a quem deixei de estimar nem assim lhes retirei o nome da oferenda mesmo se retirei o indivíduo do meu bem-querer. Refiro-me, é claro, às edições brasileiras, as traduções fogem ao meu controlo. Lá estão os nomes todos, um a um – quando escrevi o livro estimava os admirava fulano a quem o dediquei, se depois ele se revelou calhorda, o nome permanece na dedicatória datando a escrita e a ingenuidade do autor.»

José Saramago não teve este entendimento.

Desde que conheceu Pilar, as novas edições dos livros, antes dedicados a Isabel da Nóbrega, passam a não ter essa indicação.

Num lamento, Isabel da Nóbrega disse que foi uma atitude que não era preciso tomar.

Segundo o jornalista Luís Leal Miranda (jornal I  de 26 de Junho de 2010), Saramago pronunciou-se por várias vezes sobre o assunto, garantindo que as dedicatórias fizeram sentido na altura em que essas edições foram publicadas. E essas edições, já esgotadas, permanecem em sintonia com as inclinações amorosas da altura.

Num outro registo, Saramago salientou que as dedicatórias permanecem nas edições correspondentes ao tempo em que os livros foram escritos.

A história é conhecida.

Depois de ler livros de José Saramago, principalmente O Ano da Morte de Ricardo Reis, a jornalista espanhola Maria del Pilar ficou como que encantada.

«Senti que tinha de agradecer ao autor os livros que me tinha dado a ler. E sobretudo dizer que tinha tratado os seus leitores como seres inteligentes. Tinha-me sentido respeitada como leitora e quis agradecer-lhe.»

Veio até Lisboa e conseguiu uma conversa com Saramago.

Tal como na sinfonia de Beethoven, ambos terão sentido o destino a bater-lhes à porta.

Sabe-se o que aconteceu.

Desde então, os livros de José Saramago deixaram de ser dedicados à Isabel para passarem a ser dedicados a Pilar.

Os dois primeiros livros de José Saramago, Terra do Pecado (1947), Os Poemas Possíveis (1966), não têm qualquer dedicatória.

Mas em Provàvelmente Alegria já se revela uma leve indicação do que serão as dedicatórias futuras:

«Para tão grande amor tão curta a vida.»

Cheguei tarde ao encontro deste verso,

Outro o escreveu por mim, mas dele tomo,

Como rosa colhida que te ofereço.

Em Deste Mundo e do Outro (1971), algo um pouco mais especifico:

Não se dirá aqui o nome. Mas da sua exaltação nasceu este poema, do seu rigor esta autobiografia, da sua verdade esta meditação e basta.

Mas é com o livro seguinte, A Bagagem do Viajante (1973) que o nome finalmente surge e que, por diversos livros, José Saramago manterá:

Dir-se-á desta vez aqui o nome. Pelas mesmas razões da exaltação, do seu rigor e da sua verdade. E porque estes dias são mais exaltantes ainda, mais rigorosos e de uma verdade que já é unidade inultrapassável. Isabel.

Seguem-se:

As Opiniões que o DL Teve (1974):

Para a Isabel e para os meus amigos.

O Ano de 1993 (1975):

Para a Isabel. Este livro, o antes e o depois dele, todos os passos e todos os gestos, todas as palavras ditas e as que estão por dizer. Assim. Mesmo que o tempo não entenda já de coisas como esta.

Os Apontamentos (1976):

À Isabel, este livro e todos.

Aos trabalhadores do «Diário de Notícias» que foram o meu apoio e a primeira justificação de quanto escrevi.

Manual de Pintura e Caligrafia (1976):

Para a Isabel, tão inseparável deste livro como da minha vida.

Objecto Quase (1977):

Para a Isabel, porque me disse de que lado está a vida.

A Noite (1979)

À Luzia Maria Martins, que me achou capaz de escrever esta peça.

À Isabel

Levantado do Chão (1980):

À Isabel sempre.

A João Domingos Serra e João Besuga, e também a Mariana Amália Besuga, Elvira Besuga, Herculano António Redondo, António Joaquim Cabecinha, Maria João Mogarro, João Machado, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António catarro, José Francisco Curraleira, Maria saraiva, António Vinagre, Bernardino barbas Pires, Ernesto Pinto Ângelo – sem eles não teria sido escrito este livro.

À memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados.

Que Farei Com Este Livro? (1980):

À Isabel cada vez mais.

Viagem a Portugal (1981)

A quem me abriu portas e mostrou caminhos, à companheira constante que tantas vezes disse. «Repara» - e também em lembrança de Almeida Garrett, mestre de viajantes.

Memorial do Convento (1982):

À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova.

O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984):

À Isabel, outro livro, o mesmo sinal.

A Jangada de Pedra (1986)

Sem dedicatória

A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987):

Sem dedicatória.

A História do Cerco de Lisboa (1989) é o primeiro livro em que aparece Pilar:

A Pilar

A partir daqui todos os livros serão dedicados a Pilar.

Em As Pequenas Memórias (2006), pode ler-se:

A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.

Todo o ser humano é falível.

Felizmente!

Em 1944, José Saramago casa com a pintora Ilda Reis.

Entre 1954 e 1964, Isabel da Nóbrega viveu com o crítico João Gaspar Simões, que nunca perdoou ter sido trocado por um obscuro jornalista e tradutor.

A relação com Saramago durará de 1970 a 1976.

Pelo próprio Saramago fica a saber-se que Isabel da Nóbrega lhe abriu portas e novos caminhos.

Completamente despropositado e idiota existir quem defenda que foi Isabel da Nóbrega quem ensinou José Saramago a escrever.

Antes de Isabel, Saramago já era escritor.

O outro texto foi publicado  a 28 de Junho de 2015:

«Na Cronobiografia de José Saramago, preparada por Fernando Gómez Aguilera, pode ler-se:

1970

Começa a viver com a escritora Isabel da Nóbrega, relação que durará até 1986.

Contudo, a atracção de Saramago por Isabel, ou vice-versa, é anterior a 1970.

No índice Onomástico da Correspondência trocada entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago, há três entradas para Isabel da Nóbrega.

Em nenhuma delas o seu nome aparece, mas poderá concluir-se que se o pormenor é citado no Índice motivos existirão, e a isso não será alheio o desejo do autor que assim fosse.

Vejamos:

Desculpe esta secura. Esta carta, embora pequena, foi interrompida várias vezes por questões tão comezinhas que até fazem raiva.

(Carta datada de 31 de Julho de 1961)

Leu já a «crítica» que o Gaspar Simões fez ao seu livro (A Escola)? Tardou mas arrecadou, benza-o Deus! Por que bulas é aquele homem crítico literário, e influente, é que eu não entendo. Ou o homem é estúpido, ou não sabe ler. Ou será as duas coisas? Duma coisa estou eu certo: é da maldade dele. Porque se aquilo não é maldade, então só vejo outra saída: senilidade, que, como todos sabemos, às vezes refina na velhacaria.

(Carta datada de 4 de Novembro de 1961)

Uma carta minha, depois de todo este tempo de silêncio, deve causar-lhe uma impressão de revenant. Em certo sentido, essa impressão é justificada, poi tanta coisa se passou na minha vida, nestes últimos meses, que eu próprio chego a pensar se não terei morrido mesmo – e ressuscitado. Não estive doente, pelo menos no sentido usual da palavra, não tive médico à cabeceira nem termómetro ao canto da boca, mas estive prestes a destruir toda a minha futura, sabe-se lá de que maneira e com que consequências. Para abreviar: saí de casa, deixei a família, atrás de uma miragem em figura de mulher – que são sempre as piores miragens. Felizmente que o bom-senso e a descoberta de que a razão verdadeira da minha vida estava, afinal, naquilo que estaticamente deixara. Tudo se recompôs, é certo, mas depois de tanto sofrimento (sofrido e infligido) que ainda me espanta agora como estou são de espírito.

Com tal situação, que se arrastou durante meses, não prejudiquei apenas a minha vida particular e a dos meus. Os meus deveres na editora foram um pouco esquecidos, e devo à amizade e compreensão dos nossos amigos Canhão e Correia o não estar agora numa situação difícil.

(Carta datada de 19 de Setembro de 1962)

4 comentários:

Rui Figueiredo disse...

É bem patente o carácter da criatura. Existem testemunhos claros

Luis Eme disse...

Acho que Saramago fazia demasiadas dedicatórias, Sammy. :)

Em relação à questão, tem todo o direito de apagar o que quiser, nas reedições. Cada livro é um livro e o tempo vai mudando o que sentimos pelas pessoas.

E prefiro que seja verdadeiro e não hipócrita.

Sammy, o paquete disse...

Obrigado pela visita e pelo comentário, Rui Figueiredo.
Um abraço

Sammy, o paquete disse...

Sim, Luís, o Saramago abusava das dedicatórias, muitas delas repetitivas, e, obviamente, tinha o direito de, nas reedições dos livros, apagar o que entendesse.
Mas nessa questão estou mais de acordo com a opinião do Jorge Amado, já para não referir a tristeza de Isabel da Nóbrega quando confidenciou a um jornalista aquele «não foi bonito.»
Segundo o que li, o que é possível conhecer, a Isabel da Nóbrega, desde o primeiro minuto acreditou que, um dia, Saramago seria Nobel da Literatura. E isso, mau grado os palermas andantes que por aí campeiam, não tem nada a ver com o «ensinar o labrego a comer à mesa.»
By the way: já reparou que estamos, novamente, em «mês de rr berbigões»?