sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O FLAGELO DA FDJ

Por motivos que se perguntassem nem saberia responder, não sou leitor de Miguel Esteves Cardoso.

Mas mão amigo fez o favor de me enviar esta crónica de Miguel Esteves Cardoso porque, conhecendo a minha falta de jeito para imensas e diversas coisas, haveria de gostar de ler.

Aqui fica a crónica:

«Desde miúdo que pertenço à FDJ. Foi quando fiz a minha primeira torrada que os meus pais me inscreveram. Desde aí, sempre que posso, tenho promovido os valores da FDJ.

Quando me perguntam pela sigla do crachá, ou das decalcomanias na minha mochila, digo que são da Federação Da Juventude. Mas os sócios que me estiverem a ler saberão que, na verdade, correspondem a Falta De Jeito.

Quando Chico Buarque canta O Meu Amor, as palavras entram-nos pela consciência adentro: “o meu amor tem um jeito manso que é só seu...” Mas a falta de jeito não lhe fica atrás: também é só minha.

Lembro-me do meu pai a tirar-me o quebra-nozes ou o berbequim ou o tira-linhas das mãos e, olhando para a cagada feita, exclamar: “Mas que falta de jeito! Chega a ser espantoso como é que um só ser humano consegue ter tanta falta de jeito!”

Começava a angústia genética: “Mas de onde é que tu herdaste essa falta de jeito? Dos teus pais, não foi. Dos teus avós, tão-pouco. Mas então de onde? Qual foi o borra-botas do antepassado que te inquinou com tanta falta de jeito, santo Deus?”

A minha mãe defendia-me, mas só superficialmente, sem convicção, alegando que eu não tinha FDJ - o que eu era, era canhoto.

Mas não é por ser-se canhoto que se tem FDJ. O que não faltam por aí são canhotos maneirinhos, cheios de habilidades, capazes de tocar a Scheherazade de Rimsky-Korsakov com um abre-latas e um fio de pesca.

O primeiro choque do portador de FDJ é descobrir que não tem cura. Pois a FDJ tem o espantoso condão de moldar-se a qualquer actividade humana. As palavras mais dolorosas que um portador de FDJ pode ouvir, ao tentar (debalde) executar uma tarefa, são: “Não se preocupe. É só uma questão de jeito...”

Pois é, lá isso é, amigo, está bem visto, sim senhor: é tudo uma questão de jeito.

É tudo uma questão de jeito até a pessoa amada se virar para nós e sibilar: “Sai daí! Tu afinal não tens jeito nenhum!” É que ninguém acredita quando dizemos que temos FDJ. Mas temos.»

Miguel Esteves Cardoso no Público de 15 de Novembro de 2022

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