sábado, 22 de abril de 2023

OS CLÀSSICOS DO MEU PAI


O meu pai tinha Lisboa dentro dele.

Como Marilyn Monroe, espantava-se com os que diziam que as noites são para os sonhos. Servem para sonhos, mas para muito mais.

Trabalhava noite dentro, o fecho do jornal, quem saberá hoje o que isso é, jogatanas de poker, que abandonou quando nasci, ceias com os camaradas do jornal, amigas com quem bebia aguardente Ferreirinha ao balcão de um qualquer ao bar, sapatos de tiras e pões, conversas sem fim.  

O lindíssimo poema «Amélia dos Olhos Doces» do Joaquim Pessoa, caía-lhe como uma luva, umdos seus clássicos.

Quando para o meu pai gravei em cassettes as canções de que ele muito gostava, o aviso de que teria de lá estar a «Amélia dos Olhos Doces», foi dos primeiros avisos para que não houvesse esse esquecimento.

 Amélia dos Olhos Doces

quem é que te trouxe

grávida de esperança?

Um gosto de flor na boca.

Na pele e na roupa

perfumes de França.

 

Cabelos cor de viúva.

Cabelos de chuva.

Sapatos de tiras

e pões, quantas vezes

não queres e não amas

os homens que dormem

contigo na cam.

 

Amélia dos Olhos Doces

Quem dera que fosses

apenas mulher.

Amélia dos Olhos Doces

se ao menos tivesses

direito a viver!

 

Amélia gaivota

amante ou poeta.

Rosa de café.

Amélia gaiata

Do Bairro da Lata.

Do Cais do Sodré.

 

Tens um nome de navio.

Teu corpo é um rio

onde a sede corre.

Olhos Dcoces. Quem diria

que o amor nascia

onde Amélia morre?

 

Cabelos cor de viúva.

Cabelos de chuva.

Sapatos de tiras

e  pões, quantas vezes

não queres e não amas

os homens que dormem

contigo na cama.

O pai do Carlos Mendes, foi meu pediatra. Militante comunista, Abílio Mendes de seu nome, consultório num 1º andar na Travessa do Calado, teve vários e sérios problemas com a ditadura de Salazar. Muitas vezes telefonavam do consultório a dizer que o Sr. Doutor, por estar em viagem, teria que remarcar a consulta para um outro dia. As viagens ocorriam para os calabouços pidescos.

 Esta música de sábado lembra também Joaquim Pessoa que há uns dias partiu para onde as nuvens da sua infância sobrevivem, e os velhos desejos nunca se apagam.

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