segunda-feira, 22 de setembro de 2014

GUNFIGHT AT GASTOWN


Aqui se conta a história de como eu, John Wayne e um bêbado que encontrara a dormir  no balcão de um “saloon” demos cabo do perigoso bando de Steps Rabbit e Paul Doors.

A coisa durava já há demasiado tempo…

Qual Robin dos Bosques às avessas, descaradamente e com total impunidade, o bando roubava aos pobres para entregar aos ricos...

O “Sheriff” Cave Silver, quando chamado a pronunciar-se, balbuciava três ou quatro frases incompreensíveis e assobiava para o lado, como se não fosse nada com ele…

A gentalha lamentava-se às escondidas, mas ninguém mexia uma palha para mudar fosse o que fosse.

Alguns,  como eu,  pensavam que a brincadeira já tinha chegado longe demais e interrogavam-se se  a única alternativa não seria corrê-los a tiro da cidade.  Mas a verdade é que ninguém avançava…

Decidi então chamar a mim essa responsabilidade. Mas precisava de ajuda, e puxei pela cabeça…

John Wayne, complicado como sempre, duvidava dos pressupostos ideológicos da empreitada e dizia-me que era bom era com uma espingarda Winchester 1892 na mão, e não com um par de pistolas... Para conseguir  a sua colaboração tive de lhe garantir que ficaria com a Angie Dickinson no final, e que  lhe faria um plano daqueles que só Hawks e Ford lhe souberam fazer, em que ficava assim como suspenso no tempo, os braços e a espingarda ao longo do corpo, a balouçar para lá e para cá como se estivesse a ser batido pelo vento.

Quanto ao bêbado, esse ansiava por uma boa garrafa de vinho e por justiça social, se possível exactamente por esta ordem. E  nem pestanejou quando lhe pus em frente um frasco de whisky, garantindo-me que, na altura da verdade, as suas mãos não lhe iriam tremer, como estava a suceder naquele preciso momento…

A cidade estava deserta e embora se vissem às janelas alguns vultos a espreitar  envergonhadamente por detrás dos cortinados, ninguém ousara, uma vez mais, sair à rua.

O silêncio era total, interrompido, aqui e além, pelo barulho dos cavalos que relinchavam nos estábulos e pelo ladrar dos cães do Velho que, como sempre, andavam engalfinhados uns com os outros.

Aproximava-se o meio-dia, e desde O Comboio Apitou Três Vezes que toda a gente sabe que meio-dia é a hora a que os bandidos descem à cidade



Teria sabido bem,  enquanto esperávamos, uma musiquinha tipo My Riffle, My Poney And Me, mas a verdade é que nenhum de nós sabia cantar. Ainda me lembrei de contratar Daniel Bacelar, um  Ricky Nelson português que me sairia mais barato, mas já era muito tarde para fazê-lo embarcar de Lisboa…




Das primeiras sombras vislumbradas no horizonte até à entrada na cidade decorreu uma  eternidade e o silêncio tornara-se cada vez mais insuportável.

Doors e Rabbit não vinham sós. Traziam com eles  o ajudante Charlie Coins, que vinha dar um último passeio pela cidade antes de rumar a outras paragens.

Vinham descontraídos,  alegres e bem dispostos, a contarem uns aos outros anedotas de subidas de salários mínimos, novos impostos e cortes de pensões, rebolando-se a rir à gargalhada em cima das suas selas.

Nunca pensaram que alguém os pudesse enfrentar face a face, e quando deram por nós já era tarde demais.

John Wayne e o bêbado cumpriram a sua tarefa com uma desenvoltura e uma rapidez que já está, como diria Molero.  Rabbit e Coins caíram como tordos para não mais se levantarem…

Havia pedido aos meus parceiros que deixassem para mim o tipo do nariz comprido, por pensar que talvez fosse ele o menos hábil a manejar uma pistola, mas a verdade é que não consegui matar à primeira Paul Doors.

Ficou caído no chão a espernear, a borrar-se  todo e a gritar pela sua mãezinha.

Com as poucas forças que ainda lhe restavam arrastou-se pelo chão e agarrou-se às minhas pernas, prometendo-me lugares de administração em tudo o que fossem ranchos nos arredores se lhe poupasse a vida.

Pareceu-me vê-lo sorrir quando lhe disse que era irreversível, e ainda mais me sorriu quando lhe meti pela garganta abaixo o cano da pistola, imediatamente antes de um esgar de pânico tomar conta do seu rosto ao perceber, pelo meu olhar, que desta vez o irreversível seria mesmo irreversível…

Fechei os olhos e disparei.

O que teria visto se os tivesse aberto não seria nada que já não tivesse encontrado muitas vezes  nos filmes do Tarantino e do Robert Rodriguez...

Mas mantive-os fechados durante tanto tempo que me pareceu uma eternidade. E ainda estava de olhos fechados quando o borburinho começou a tomar conta da cidade,  e os medrosos de há pouco assumiam agora, sem qualquer risco, a sua alegria e a sua coragem. 

Os restantes capangas do bando, esses haviam entregue de imediato as suas armas sem pestanejar

O “Sheriff” Cave Silver, chamado ao local,  abriu alas por entre a multidão, olhou para os três corpos estendidos no chão, balbuciou duas ou três frases incompreensíveis e seguiu o seu caminho, como se não fosse nada com ele. E foi o mais acertado que poderia ter feito,  porque um passo em falso ou uma frase fora do contexto e teria ido, também ele, desta para melhor…

Teria sido bonito  sair da cidade tipo justiceiro solitário, como nos filmes do Clint Eastwood, muito direito na minha sela, chapéu enfiado na cabeça até aos olhos e o cavalo em passo lento,  enquanto novelos de cotão atravessavam o plano levados pelo vento.

Mas a verdade é que não me apetecia estar sozinho.

Não naquele dia em que, pela primeira vez, havia ceifado a vida a um Ser Humano. E a sangue frio, ainda por cima…

Mas a verdade é que não havia nada a fazer.

John Wayne havia pregado dois beijos e uma palmada no rabo da Angie Dickinson e zarpara de imediato para Hollywood, onde o esperava mais um filme de “marines”.

O Velho mal se arrastava nas suas pernas  e jamais seria capaz de abandonar os seus cães e a cidade onde desde há muito se habituara a viver.

O bêbado, esse tudo quanto ainda esperava da vida estava naquele balcão daquele “saloon”, no fundo daquela garrafa.

Despedi-me de todos, sabendo que saudades, verdadeiras saudades, só iria sentir do Velho. Das canções antigas  que me cantava enquanto bebíamos um copo de vinho e fumávamos um charuto rasca,  de pernas esticadas no alpendre…  Das suas  gargalhadas, dos nomes que me chamava...

Sabia que o mais certo seria nunca mais encontrar nenhum deles, excepto os políticos e os oportunistas porque a esses, como dizia Chandler dos polícias, ainda ninguém inventou maneira de lhes dizer adeus.

Não tinha, por isso, grandes ilusões em relação ao futuro. Sabia que bando morto bando posto, e aqueles abutres que havia visto alegremente aos pulos pelas ruas da cidade não auguravam nada de bom…

Enquanto me preparava para virar costas à cidade, não me sentia muito bem  comigo próprio… A minha costela humanista não parava de me gritar que, salvo  raríssimas excepções, felicidade nenhuma  poderá ser conquistada sob a perda de um Ser Humano. Mas procurava consolar-me  dizendo-me que talvez esta tivesse sido  uma dessas excepções e, quem sabe, talvez que muita gente me viesse ainda a agradecer no futuro…  

Absorto nos meus pensamentos, só muito tarde me apercebi da algazarra que se passava atrás de mim.

Virei-me e deparei com o Velho que, acompanhado pelo mais fiel dos seus cães,  ensaiava uns passos de dança enquanto cantarolava uma das músicas que sabia que eu mais gostava.

Parou quanto o olhei nos olhos, receoso que o recambiasse de volta para a cidade.

De certeza que a sua miopia não o deixaria ver as minhas lágrimas, mas e verdade é que,  de repente, soltou uma sonora gargalhada, chamou-me um nome muito feio e perguntou-me, pela enésima vez, se alguma vez tinha sido mordido por uma abelha morta…  



Luís Miguel Mira

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