segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

OLHAR AS CAPAS


Cidade Diária

Baptista-Bastos
Editorial Futura, Lisboa, 1972

Mas houve um bom Natal na minha vida. Um bom Natal inesquecível. Um bom Natal em que este metro e oitenta e quatro de português, que redige um português inútil, inútil português de metro e oitenta e quatro, presumiu ser útil escrevendo num português inçado de erros, coxo, desmantelado – mas feliz. Foi assim: pelas onze e meia da noite de um 24 de Dezembro eu estava na redacção do jornal onde trabalhava. Veio um telegrama de Londres que dizia mais ou menos isto: «Um menino que está a morrer pediu à mãe morangos. Não há morangos em Inglaterra por esta época do ano. A mãe foi à B.B.C. e a B.B.C. fez um apelo. Um avião em voo escutou-o. Transmitiu o apelo a todos os aviões do mundo. E alguns aviões do mundo atrasaram as suas partidas, transferiram de bojo para bojo um cesto de morangos que fora adquirido na Cidade do México. Os morangos chegaram a Londres.»
Não havia mais no telegrama; mas era uma grande história de Natal e de amor. Numa suave noite de Natal, em que seria radioso relembrar às pessoas que, por vezes, as pessoas conseguem coisas formidáveis. Ao telegrama de Londres eu tinha, somente, de apor um título. Foi o que saiu: «Os homens levaram-lhe os morangos.»
Nunca soube se o menino de Londres chegou a comê-los. Nunca soube se o menino de Londres conseguiu safar-se da morte. Sei que houve dezenas de aviões que transmitiram o pedido de uns para os outros, que centenas de passageiros, certamente imprecando, saíram atrasados para os seus destinos. Sei que os morangos chegaram a Londres.
Sei que em Lisboa, num Dezembro usualmente triste, a arremedar uma humilde felicidade, a qual, por ser humilde, terá sempre de ser simples, afectuosa e discreta – houve um repórter que escreveu palavras úteis porque eram o alvoroçado testemunho de que os homens, quando querem, conseguem tudo quanto querem.

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