sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

SARAMAGUEANDO


Então o carpinteiro encheu-se de coragem e em voz alta perguntou se naquela casa, ou noutra, Se me estão a ouvir, alguém quereria, em nome do Deus que tudo vê, dar guarida a sua mulher, que está para ter um filho, decerto haverá por aí um canto recolhido, que esteiras trazia-as ele, E também onde é que poderei encontrar nesta aldeia uma aparadeira para ajudar ao parto, o pobre José dizia envergonhado estas coisas enormes e íntimas, ainda com mais vergonha por sentir-se corar ao dizê-las. A escrava que o atendia ao portal foi dentro com a mensagem, o pedido e o protesto, demorou-se, e voltou com a resposta de que não poderiam ficar ali, procurassem outra casa, mas não a tivessem por certa, e que a sua senhora mandara dizer que o melhor para eles ainda seria recolherem-se a uma das muitas covas que havia naquelas encostas, E a aparadeira, perguntou José, ao que a escrava respondeu que, autorizando os seus amos e aceitando-a ele, ela mesma poderia ajudar, pois não lhe haviam faltado na casa, em tantos anos, ocasiões de ver e aprender. Em verdade, muito duros são estes tempos, e agora se confirmou, que vindo bater à nossa porta uma mulher que está para ter um filho, lhe recusámos o alpendre do pátio e a mandámos parir numa cova, como as ursas e as lobas. Deu-nos, porém, a consciência um rebate, e, levantando-nos donde estávamos, fomos ver ao portal quem eram esses que buscavam abrigo por razão tão urgente e fora do comum, e quando demos com a dolorosa expressão da infeliz criatura apiedou-se o nosso coração de mulher e com medidas palavras justificámos a recusa por termos a casa cheia, São tantos os filhos e as filhas nesta casa, os netos e as netas, os genros e as noras, por isso não podíeis caber cá, mas a escrava vos levará a uma gruta que nos pertence e que tem servido de estábulo, aí ficareis cómodos, não há lá animais agora, e, tendo isto dito, e escutado os agradecimentos da pobre gente, nos retirámos para o resguardo do nosso lar, experimentando nas profundezas da alma o conforto inefável que dá a paz da consciência.
Com todo este ir e vir, este andar e estar parado, este pedir e perguntar, foi desmaiando o forte azul do céu, e o sol não tarda que se esconda por trás daquele monte. A escrava Zelomi, que esse é o seu nome, vai à frente guiando os passos, e leva um pote com brasas para o lume, uma caçoila de barro para aquecer a água, sal para esfregar o recém-nascido, não vá apanhar alguma infecção.
E como de panos vem Maria servida e a faca com que se há-de cortar o cordão umbilical trá-la José no seu alforge, se Zelomi não preferir cortá-lo com os dentes, já a criança pode nascer, afinal um estábulo serve tão bem como uma casa, e só quem nunca teve a felicidade de dormir numa manjedoura ignora que nada há no mundo que se pareça mais com um berço. O burro, pelo menos, não lhe achará diferença, a palha é igual no céu e na terra. Chegaram à cova aí pela hora terça, quando o crepúsculo, suspenso, ainda dourava as colinas, e não foi a demora tanto por causa da distância, mas porque Maria, agora que levava garantida a pousada e pudera, enfim, abandonar-se ao sofrimento, pedia por todos os anjos que a levassem com cuidado, pois cada resvalo dos cascos do asno nas pedras a punha em transes de agonia. Dentro da caverna fazia escuro, a enfraquecida luz exterior detinha-se logo à entrada, porém, em pouco tempo, chegando um punhado de palha às brasas e soprando, com a lenha seca que ali havia, a escrava fez uma fogueira que era como uma aurora. Logo, acendeu a candeia que estava dependurada duma saliência da parede, e, tendo ajudado Maria a deitar-se, foi por água aos poços de Salomão, que ali são perto. Quando voltou, achou José de cabeça perdida, sem saber que fazer, e não devemos censurá-lo, que aos homens não os ensinam a comportar-se utilmente em situações destas, nem eles querem saber, o mais de que hão-de vir a ser capazes é pegar na mão da mulher sofredora e ficar à espera de que tudo se resolva em bem. Maria, porém, está sozinha, o mundo acabaria de assombro se um judeu deste tempo ousasse cometer esse pouco. Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, como foi determinado pelo Senhor Deus quando Eva errou por desobediência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia continua. José já ali não está, nem sequer à entrada da cova. Fugiu para não ouvir os gritos, mas os gritos vão atrás dele, é como se a própria terra gritasse, a tais extremos que três pastores que andavam por perto com os seus rebanhos de ovelhas foram para José e perguntaram-lhe, Que é isto, que parece que a terra está gritando, e ele respondeu, É a minha mulher que dá à luz além naquela cova, e eles disseram, Não és destes sítios, não te conhecemos, Viemos de Nazaré de Galileia ao recenseamento, na hora que chegámos cresceram-lhe as dores, e agora está nascendo. O crepúsculo mal deixava ver os rostos dos quatro homens, em pouco tempo todos os traços se iriam apagar, mas as vozes prosseguiam, Tens comida, perguntou um dos pastores, Pouca, respondeu José, e a mesma voz, Quando tudo estiver terminado vem dizer-me e levar-te-ei leite das minhas ovelhas, e logo a segunda voz se ouviu, E eu queijo te darei. Houve um longo e não explicado silêncio antes que o terceiro pastor falasse. Finalmente, numa voz que parecia, também ela, vir de debaixo da terra, disse, E eu pão lhe hei-de levar.
O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. Envolto em panos, repousa na manjedoura, não longe do burro, porém não há perigo de ser mordido, que ao animal prenderam-no curto. Zelomi saiu fora a enterrar as secundinas, ao tempo que José se vem aproximando. Ela espera que ele entre e deixa-se ficar, respirando a brisa fresca do anoitecer, cansada como se tivesse sido ela a parir, é o que imagina, que filhos seus próprios nunca os teve.
Descendo a encosta, aproximam-se três homens. São os pastores. Entram juntos na cova. Maria está recostada e tem os olhos fechados. José, sentado numa pedra, apoia o braço na borda da manjedoura e parece guardar o filho. O primeiro pastor avançou e disse, Com estas minhas mãos mungi as minhas ovelhas e recolhi o leite delas. Maria, abrindo os olhos, sorriu. Adiantou-se o segundo pastor e disse, por sua vez, Com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo. Maria acenou com a cabeça e voltou a sorrir. Então, o terceiro pastor chegou-se para diante, num momento pareceu que enchia a cova com a sua grande estatura, e disse, mas não olhava nem o pai nem a mãe da criança nascida, Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era.


Legenda: Adoração do Menino, pintura de Gerard van Honthorst

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