domingo, 16 de dezembro de 2018

OLHAR AS CAPAS


A Mãe de um Rio

Agustina Bessa-Luís
Babel, Lisboa, Outubro de 2014

Antigamente, sim, antigamente, a terra tinha a forma quadrada e um rio de fogo corria na superfície. Não havia aves nem plantas, as águas estavam nos ares como nevoeiros cor de ferro e os ventos não as tinham distribuído ainda pelos quatro cantos agudos da Terra. Onde estava o peixe minúsculo de ventre negro, ou as bonitas serpentes de escamas verdes? Não existia o trigo nem a mão humana, nem mesmo o sono ou a dificuldade, que foi o segundo grito da criação. Passamos hoje por um caminho que tem nele marcado outras pegadas, e ocorrem-nos as histórias doutras idades. Por deserto que esteja o campo e frio o sol, o tempo está presente e nos penetra de sabedoria e fortaleza. A única solidão é aquela que não tem passado.
Se hoje percorrermos um velho lugar inóspito, como a serra da Nave, mil lembranças nos acodem, e cada pedra desconhecida, cada ramo de acónito e de malvaísco nos apresenta uma parada de vidas, de funções, de razões e de espiritualidade. Temos que morrer um dia, mas que deixemos no solo húmido a sombra da nossa obediência mortal.
Mas comecemos a história da mãe de um rio.

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