segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

OLHAR AS CAPAS


Homens E Bichos

Axel Munthe
Tradução e prefácio de António Sérgio
Editorial Progresso, Lisboa s/d

Tinha-o contratado por todo o ano. Duas vezes por semana, vinha tocar-me todo o seu repertório; e, nos últimos tempos, por simpatia pela minha pessoa, bisava o «Miserere» do Trovatore, a sua peça de resistência. Punha-se bem no meio da rua. Fixando-me as janelas enquanto tocava; chegado ao fim, tirava o chapéu e exclamava: «Addio Signor!»
Sabe-se que o realejo, exactamente como o violino. Adquire com o tempo uma sonoridade mais bela, mais impressiva. Tinha o velho um instrumento de primeira ordem, não do tipo moderno e barulhento, que imita as orquestras com as suas flautas, seus metais e seus tambores, mas um realejo velho e melancólico, que insinuava um devaneio misteriosos no mais jovial dos allegrettos, e cujo tempo di marcia mais bélico evocava inconsoláveis resignações. Nas peças de maior ternura, quando o canto se velava e tremia. Como a voz de um velho cantor ambulante, e ia tenteando um caminho incerto pelos tubos enferrujados das notas altas, fazia-se ouvir pelos baixos roucos um trémulo de soluços abafados. O realejo, lá de quando em quando, emudecia de todo; resignadamente, o velho manivelava nesses compassos de espera, mais eloquentes no seu silêncio que a mais comovedora de todas as músicas.
Na verdade, o instrumento cumpria com o seu dever; mas cabia ao velho uma boa parte naquela tristeza que me dominava, sempre que ouvia a sua música. Fazia estação nos bairros pobres que se estendem por detrás do «Jardin des Plantes»; e, muitas vezes, nos meus passeios solitários, me sucedeu parar diante dêle, tomando lugar no auditório escasso de garotos esfarrapados que o cercavam.

Sem comentários: