sábado, 22 de fevereiro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram publicados.


A FOTOGRAFIA É UM OLHAR NATURAL

Nos finais das tardes de segunda-feira, terminado o alinhamento do Juvenil, os passos do Mário Castrim, estendiam-se para a Pastelaria Orion, ali no cimo da Calçada do Combro: um copo de leite, torrada, a que se seguia uma bica escaldada.

Ali ficávamos à conversa.

                                             Chamava-se

                                             Orion o café
                                             onde encontrava à tardinha
                                             A minha última namorada. (1)

Numa dessas tardes de segunda-feira, já com um pé na Rua Luz Soriano:

- O Augusto Cabrita está à nossa espera.

A ideia era fazer um dos Encontros do Juvenil com a exibição do Belarmino do Fernando Lopes.

Foi a única vez que privei com Augusto Cabrita.

Fiquei com a sensação estranha que há homens que não são deste mundo.

Uma humildade desconcertante, um rosto quase a pedir desculpa do que tem para dizer e admite que o que diz não tem importância para quem ouve.

Não se consegue desviar o olhar, face a um rosto daqueles.

Assim como o Carlos Paredes, lembram-se?

Também o Artul Bual, alguns outros, não muitos, com essa arte de, apenas, quererem mostrar as maravilhosas obras que faziam, nunca se colocando em bicos dos pés, um horror a holofotes que, de imediato, lhes provocavam aceleradas fugas.




Não foi longa a conversa.

O Mário Castrim tinha – sempre! - de ir a correr para a casa, esperava-o a televisão a preto e branco da ditadura, para que no dia seguinte, no Diário de Lisboa, pudesse sair o Canal da Crítica, sistematicamente com cortes, por vezes, totalmente cortado, pelos lápis azuis manejado pelos coronéis da censura, analfabetos, crápulas sem nome, às ordens de Salazar, depois Marcelo Caetano.

As fotografias do Augusto Cabrita reflectem o homem que sempre foi: atento, sensível, aquele perfume a neo-realismo, que tantos e tantos não gostam - nunca gostaram! -  de cheirar.

Uma verdade frontal em cada fotografia tirada ao quotidiano do povo, a dureza da vida das gentes do seu Barreiro.

Uma ternura desarmante, um olhar único e tocante.

A retrospectiva da obra de Augusto Cabrita continua patente, no Auditório que no Barreiro tem o seu nome, até ao dia 2 de Maio.

(1) - Versos do poema Ali se Via o Mar em  Poemas do Avante de Mário Castrim.

Texto publicado no dia 28 de Abril de 2013 

Legenda: o título é uma frase de Augusto Cabrita.
Arriflex IIB 35mm, com tripé Arriflex IIB, que se vê na imagem, foi utilizada nas filmagens de Belarmino.

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