A utopia que concebo assenta pois e
apenas nisto: que cada qual do aqui-e-agora traga amanhã outro amigo também. Ai
não há? – Então fecha-se a porta.
Vitor Silva Tavares
Legenda: pintura de Pieter Bruegel The Elder
A utopia que concebo assenta pois e
apenas nisto: que cada qual do aqui-e-agora traga amanhã outro amigo também. Ai
não há? – Então fecha-se a porta.
Vitor Silva Tavares
Legenda: pintura de Pieter Bruegel The Elder
Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de
histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias,
figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação
do dia, mês, ano em que aconteceram.
25 de Abril de 1997.
No Público desse dia, o jornalista
Nuno Pacheco tinha a tarefa de assinalar a data.
José Mário Branco já deixara numa canção que,
no decorrer do caminhar de Abril, existiram gentes que se tinham enganado.
E o jornalista alinha as palavras no
computador:
«Agota que tudo isso é já distante e que
assentámos na democrática ideia de que a luz era ilusória, dá mesmo assim para
ver que algo se perdeu na voragem dos tempos.
Sim, os que foram protagonistas duma grande
esperança e passaram a ser figurantes dum grande desencanto.
Esperanças frustradas, desilusões, esforços
que não deram os resultados esperados.
O festim durou pouco.
Lá longe, o Chico lançava o lamento de que a
festa tinha sido estragada.
Desespero
Vladimir Nabokov
Tradução: Manuela Madureira
Capa: Teresa Cruz Pinho
Colecção Aura nº 32
Editorial Presença, Lisboa, 1991
Infelizmente a minha história degenerou num diário. Não há nada a fazer, contudo, pois habituei-me a escrever que agora sou incapaz de desistir. Um diário, admito-o, é a mais baixa forma de literatura.
«Começa a ser demasiado
evidente que a guerra da Ucrânia está perdida, mas os comentadores, com raras
exceções, continuam a iludir a realidade. Na frente de combate, o lado
ucraniano parece à beira do colapso, não há munições e as baixas acumulam-se. O
país ficou arruinado e a estratégia de não se permitir o fim do massacre revela
a mais pura hipocrisia.
A ideia da América
era reduzir as capacidades militares russas sem perder soldados americanos, mas
assistimos à destruição progressiva da Ucrânia, que fornece a carne para
canhão. O Ocidente queria gerir o fim do império russo, mas apenas reanimou o
adversário. Dizem agora que os russos invadem a Europa se a Ucrânia perder, mas
oculta-se que o lado europeu da NATO gasta seis vezes mais dinheiro em defesa
do que a Rússia. Se nem nos conseguimos defender com tal abundância, a verba
serviu para quê? Portugal é um dos entusiastas na defesa da Ucrânia, diz que
vai até ao fim, mas não consegue pagar o seu próprio compromisso na NATO de 2%
do PIB em defesa.
Esta guerra de dois anos matou talvez meio milhão de pessoas e provocou na Europa brutais aumentos no custo da energia e dos alimentos. A sabotagem dos gasodutos NordStream foi ignorada e o gás natural americano é comprado ao triplo do preço do gás russo. Os nossos dirigentes diziam que a Rússia ia colapsar sob o peso das sanções, mas as sanções saíram do bolso dos europeus. Bruxelas também permitiu a entrada livre de produtos agrícolas ucranianos mais baratos, que não cumpriam as regras da política agrícola comum, e os agricultores europeus entraram em revolta. Não deixa de ser curioso que a metade mais fértil das terras agrícolas ucranianas fosse comprada antes da guerra por multinacionais americanas (também sauditas e europeias) que querem escoar os seus produtos.
Os cemitérios ucranianos estão cheios, o país depende do exterior para pagar
salários e pensões, tem um terço da economia destruída, as fábricas em ruínas,
60% dos trabalhadores mobilizados, 2 milhões de habitações danificadas, 10 milhões
de deslocados, um quinto do território ocupado e milhões de refugiados que não
tencionam regressar. A reconstrução vai custar 500 mil milhões de euros em dez
anos (números da UE certamente otimistas). A equação é simples: a guerra está
perdida.
Ao longo de dois anos, fomos enganados a ritmo diário. A Ucrânia vencia todas
as batalhas, mas na verdade sangrava. Houve oportunidades perdidas para
negociar a paz, mas deste lado só se falou em enviar mais armamento. Os russos
estavam isolados (não estavam) e tinham perdas calamitosas, mas na realidade a
Ucrânia não consegue mobilizar mais soldados e a desproporção em artilharia (a
arma mais letal) foi ao longo do conflito favorável à Rússia em cinco obuses
para um. Quem é que perdeu mais soldados?
Apenas 10% dos europeus acreditam que a Ucrânia pode vencer, mas os meios de
comunicação continuam a transmitir a ideia de que a vitória está ao virar da
esquina. A derrota da Ucrânia será atribuída aos que não acreditam, por falta
de fé e por serem admiradores de Vladimir Putin. Não se explica que a maior
parte do dinheiro que supostamente vai salvar Kiev e que os republicanos do
Congresso se recusam a entregar serviria para pagar armas já fornecidas e repor
stocks de munições nos EUA. Este dinheiro nem sairá da América e consiste num
enorme pacote de financiamento da indústria de armamento.
Os que defendem a guerra usam analogias históricas, como por exemplo a invasão
da Polónia em 1939. A Rússia usa uma analogia parecida, de agressão fascista,
mas nenhum exemplo descreve a realidade. A Ucrânia estava em guerra civil antes
da invasão e a Rússia é uma potência nuclear que se considera em crise
existencial. O Kremlin, que foi enganado nos acordos de Minsk, jamais aceitaria
a entrada da Ucrânia na NATO ou a perda da Crimeia. A Rússia foi subestimada e
do lado ocidental houve a estranha ilusão de que fornecer armas a um
beligerante não ia ter custos.
Com a degradação constante da situação na frente e o ocidente incapaz de
fornecer mais munições, a opinião pública precisa de abandonar depressa o
estado de incompreensão em que mergulhou. Os nossos líderes devem assumir os
erros e reconhecer que chegou a hora do cessar-fogo e de acabar com a
carnificina. A agonia da Ucrânia só pode parar por negociação ou capitulação e,
quanto mais tempo se perder, mais difícil será conseguir um bom acordo para os
ucranianos, que se arriscam a ficar sem país, a troco de nada.»
Luís Naves no Delito de Opinião
O amor do mundo
é um campo aberto.
De bem comigo,
se o tenho perto.
Gostava de tê-lo
na mão como um ovo
quente só de paz
e de um tempo novo.
Mas alheio, adverso,
teço a minha teia,
como um bicho deixa
as patas na areia.
João José Cochofel em 46ºAniversário
Os verdadeiros
parentes não são aqueles que nos destinou a genealogia: com esses, em regra,
sente-se que não há nenhuma afinidade; um dia nos encontraremos no mundo com um
estranho que sentiremos irmão, pai. Esse será um verdadeiro parente!
Pitigrilli
Guerra Colonial:
- 800 mil jovens foram mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique
- mais de 10 mil mortos
- 40 mil estropiados e deficientes
- Em Julho de 1989, a Associação dos Deficientes das Forças Armadas estimava
que o stress de guerra afectava cerca de 140 mil ex-combatentes com várias
perturbações traumáticas. No entanto, a estatística é falível porque se admite
que não são conhecidos todos os casos. Entre os que recebiam assistência
psiquiátrica encontrava-se um número considerável de drogados, alcoólicos,
outros com graves problemas de adaptação social.
Sabemos destes números.
Serão mais? Serão menos?
Escreve João Paulo Guerra no seu livro «Memórias da Guerra Colonial»: não
há estatísticas para a solidão, a ansiedade, o medo, o sofrimento, a dor.
Há feridas que custam a cicatrizar, mas o silêncio não é o melhor remédio.
O reino da mediocridade salazarista, o frenesim de manter um Portugal uno e
indivisível, de Minho a Timor, impuseram uma guerra sem sentido, estúpida e
inútil.
O desprezo por todo um povo.
Adeus até ao meu regresso.
Lembram-se?
Se se lembram, não nos obriguem a esquecer.
Porque ninguém perguntou àqueles jovens se queriam ou não participar naquela
guerra.
Uma verdade: não sabemos tudo sobre esta guerra. Apenas julgamos saber…
No Natal de 1971 o «Movimento Nacional Feminino» editou um disco que foi
distribuído pelos soldados que combatiam em África onde, possivelmente, não
existiam gira-discos e, em quartéis de morros e picada nem electricidade havia.
Na contracapa do disco fala-se das muitas vontades que permitiram que ele fosse
feito.
O disco integra mensagens patrióticas de um leque de personagens onde, entre
outros, surgem Eusébio, Hermínia Silva, Parodiantes de Lisboa, Inspector
Varatojo, Joaquim Agostinho, Amália Rodrigues, Maria de Lurdes Modesto,
Florbela Queiroz.
Vai o disco a meio e ouve-se:
Sou a Cilinha, também conhecida por Cecília Supico Pinto, rosto, e tudo
o mais, do «Movimento Nacional Feminino», «uma Salazar de saias», como alguém
lhe chamou.
Cabem-me as missões mais gratas neste LP de carinho. Antes de mais a de
representar as vossas famílias. É com toda a alegria que o faço. Em nome delas:
«Olá rapazes! Santo Natal.»
António Lobo Antunes em «Os Cus de Judas»:
«As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os
visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves
com a efígie de Salazar, acompanhadas de Padre Nossos nacionalistas e de
ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da Pide superavam em
eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei
que os pêlos dos seus púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes
escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que
abandonavam rastros luzidios de caracol na murchidão das coxas.»
O disco não termina sem que se volte a ouvir a voz da Cilinha:
«A fechar este disco a presença dum soldado que é vosso chefe e irmão: o
General Sá Viana Rebelo:
Destinam-se estas palavras a figurar no disco do simpático Movimento
Nacional Feminino para lembrança individual no Natal de 1971 dos militares do
Exército, Marinha e Força Aérea. Tais palavras serão uma mensagem de esperança
e de paz (…) vejamos um dia recompensados os nossos esforços para que a paz
volte à terra portuguesa. (…) Mais um ano em que há afastamento de militares
das suas famílias (…) Quantos Natais muitos dos nossos militares passaram já
afastados das famílias? (…) Mas é sacrifício de que os nossos filhos e netos
irão mais tarde beneficiar. Nada daquilo que se faz em África se irá perder.
Tudo durará. Haja o ânimo de defender o que é nosso e Portugal continuará na
terra africana a celebrar na nossa África os Natais de Cristo como agora. E
mais tarde de regresso aos lares ao ouvirem este disco estou certo de que
muitos, todos, dirão: custou-me bastante mas valeu a pena!»
O Processo do
Salazarismo
Pedro Ramos de Almeida
Capa: Delgado Godinho sobre ilustração de Henrique
Ruivo
Edições Avante, Lisboa Novembro de 1983
O regime político
português actual, o Estado Novo, é uma ditadura fascista que se seguiu ao golpe
de Estado militar de 28 de Maio de 1926
Salazar, que foi
ministro das Finanças da ditadura militar (27 de Abril de 1928) antes de se
tornar ditador, definiu o carácter permanente da ditadura nos seguintes termos:
«As ditaduras não
me parecem ser hoje um parêntesis de um regime, mas elas próprias um regime, se
não perfeitamente constituído, um regime em formação.» (26.5.1934)
O pensamento do
ditador revela-se com nitidez na seguinte afirmação:
«Não há dúvida de
que a democracia política, sob a sua forma parlamentar e partidária, entrou há
muito em crise de descrédito e em decomposição (…) Há-de arrastar-se décadas;
filosoficamente pode dizer-se que está ruindo pelos alicerces.»
(4.7.1957).
«Democraca. Liberdade,
reacção, progresso, além de outros, são no espírito de quase todos nós puros
mitos, abstracções de que não se pode tirar regra de conduta nem finalidade
nacional», dirá muito claramente Salazar no prefácio dos seus Discursos, em
Novembro de 1943, já quase no termo da Segunda Guerra Mundial…
O fascismo português,
inspirou-se nos regimes de Mussolini e de Hitler, e copiou mesmo a organização
do corporativismo italiano.
Apesar de tudo, existe a beleza
e, um dia,
sabemos que ela passou
no vale onde
aceitámos viver.
Basta um sonho
e do suor
eleva-se o perfume das laranjeiras.
Basta um sorriso
e todos nos sentimos verdadeiramente irmãos.
Um dia fechamos o escorpião do medo
no círculo
triunfante do nosso amor:
É tão simples – dizemos – um pouco de alegria!
António Cabral em OsHomens Cantam a Nordeste
Este não é o dia seguinte
do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de
histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias,
figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação
do dia, mês, ano em que aconteceram.
História como a que hoje trazemos também
pode pertencer a um Viagem por Abril.
24 de Fevereiro de 1965.
Estádio da Luz, jogo da 1ª mão dos quartos-de-final
da Taça dos Campeões Europeus.
Benfica 5 - Real Madrid 1.
No dia seguinte o Mundo Desportivo
titulava a toda a largura da 1ª página: «O “Vale dos Caídos” mudou-se para
Lisboa.»
Portugal e Espanha viviam em ditadura.
Em
Portugal, a leitura do título teve leituras várias, dependendo dos olhos que o
leram. Ainda recorda a satisfação do avô, benfiquista e republicano histórico”,
a entrar em casa, o jornal na mão, com os olhos brilhantes de satisfação. E o
motivo não era apenas a vitória do Benfica…
A crónica do jogo abria assim:
«Não foi realmente a batalha de Aljubarrota. Nem tão pouco a de Valverde, ou
qualquer outra em que os espanhóis e os portugueses tivessem escrito páginas
gloriosas da sua história. Mas foi bonito assistir-se à vitória do futebol
sobre o do Real Madrid.»
Mas o que fez explodir Franco foi o título, ao fazer a associação com o
monumento que, nos arredores, de Madrid glorifica os mortos franquistas da
Guerra Civil Espanhola, os nossos vizinhos entenderam que se tinha ido longe
demais. Recorde-se que o monumento apenas pretende recordar uma parte dos
espanhóis mortos durante a Guerra Civil
Protesto veemente e Salazar teve que encontrar, em nome da defesa da boa
harmonia entre as duas ditaduras, uma reparação.
Num ápice despediram o jornalista José
Valente e o Mundo Desportivo só reapareceu ao público oito dias depois,
falhando duas edições. Naquele tempo os jornais desportivos eram
trissemanários.
No dia 5 de Março, quando o jornal voltou a ser publicado, lia-se na 1ª página:
«A Empresa Nacional de Publicidade e o director do Mundo Desportivo
lamentam e repudiam as expressões contidas numa crónica inserida neste jornal e
que muito feriram a sensibilidade dos seus leitores. Ao autor da referida
crónica, chefe de redacção do Mundo Desportivo, único e total
responsável pelo escrito que veio a público, foram aplicadas as sanções que o
caso requeria.»
Deste modo, a paz podre da união Ibérica podia prosseguir os seus caminhos. Pelo lado que nos toca, esse caminho foi interrompido no dia 25 de Abril de 1974.
Ainda uma nota de rodapé: naquele tempo, no futebol apenas era permitida uma
substituição – a do guarda-redes.
Sabem quem era o guarda-redes suplente do Real
Madrid?
Nada mais que o cantante-machucador-de-corações
Júlio Iglésias.
Anos mais tarde, o jornalista Neves de Sousa escreverá no semanário Sete um
divertida crónica que pode ser recordada aqui.
Soldadó
Carlos Vale Ferraz
Prefácio: António Tavares-Teles
Capa: José Maria Ribeirinho
Colecção: A Guerra Colonial em Livros nº 3
Editorial Notícias, Lisboa, Novembro de 1997
Esta é a história
de Fergusino do Ó, um dos milhares de pobres diabos convocados para defender as
longínquas fronteiras do Império.
Fergusino do Ó não
sabia ler nem escrever e, como alguém disse, não pertencia ao conjunto da humanidade
responsável pelas descobertas, mas, levado por mão invisível, que sempre
acreditou ser a dos omnipresentes sargentos, chegou a Mueleka, - a terra da guerra - após uma viagem de mais
de dois meses.
Era básico, isto é
não possuía as mínimas habilitações para especialista do que quer que fosse. No
entanto serviu com a melhor boa vontade como pau para toda a obra. Foi
cangalheiro, sacristão, fiel de armazém, projecionista de filmes porno
gráficos, estivador e até piloto e guarda-costas de cíclicas excusoes de
prostitutas, vindas para animar os infortunados guerreiros.
Na tropa
chamavam-lhe Soldadó e, para ele, Mueleka – a irreparável guarnição – foi o
melhor sítio que jamais conheceu.
Palavras
Como me mandam sempre
fazer o que não sei…
encho-me de pavor por não saber…
Penso depois que o necessário é preencher o tempo…
É o que tenho feito.
De qualquer amneira…
De todas as maneiras.
Âs vezes penso que é bom trabalhar para os outros…
Que isso nos traz um grande alívio.
Que, enquanto temos o espírito aocupado
com o que sobra ou enche o espírito dos outros,
nos vamos iludindo, esquecendo…
nos vamos apoiando.
Penso que precisamos, todos de apoio.
Que, se Deus nos falta, falta-nos tudo.
E que é compreensível recorrer,
de vez em quando,
à estricnina.
Penso que, de manhã, se está, geralmente, mais
desperto.
Que é hora melhor para iludir compromissos.
Para esquecer que se acordou, e temos…
Penso várias e uma só coisa ao mesmo tempo.
Penso que tenho tido pouca sorte mas que assim era
preciso.
E se ouço passos, tremo…
Penso que gostaria, tanto!, de ler um livro…
sem pensar em mais nada.
De ajeitar, delicadamente,
O lenço a minha mãe.
De viajar.
Penso que a vida nos reserva grandes coisas,
e que que ainda estais a tempo…
Dou por mim a pensar de outra maneira:
que nunca chegaremos ao fim,
que não sabemos se queremos lá chegar,
e que, se a vontade nos escapa, temos vontade de tudo
menos
de morrer.
Porque algo, um pequenino motivo inconsciente, uma
parte,
minúscula, do
nosso destino,
Precisa atravessar as trevas, e viver!
Penso muitas vezes se acaso ser poeta não será outra
coisa,
e que os versos que escrevo bem pode ser que estejam
me enganando…
há forças que não sei explicar.
No que sempre acredito, divido sempre – observo-me –
estou
sempre de pé
atrás…
também eu, é verdade, senti deslumbramento
pela variedade multicolor dos canteiros,
pelos reflexos e mil jogos de cor da luz sobre a
folhagem…
parecia-me que a beleza perdoava tudo e a tudo
conferia
majestade.
Hoje penso que não: que adoeci, que fui envelhecendo,
que
há poucos livros úteis,
que para sobreviver, temos de
trabalhar… e o trabalho
sem amor mata.
Não penso já no amor, pendso na morte.
Não na morte que a todos nos espera, a um canto do
mundo,
a um
momento não na morte final estou pensando
agora.
Agora e a toda a hora penso na diária morte que
atravesso
e se atravessa em
mim.
Nessa, sim, é que eu penso; irremediavelmente.
Porque a outra morte tem remédio ou, se o não tem,
paciên-
Cia…
Esta, sim é que custa.
É que custa a carregar todos os dias,
peso morto.
Peso morto em que penso
sobre o tampo limpo.
Limpo e vazio.
Raul de Carvalho em Tampo Vazio
Antes tivemos
uma pré-campanha que resultou num carrossel de debates televisivos.
Se já se
contabilizava um número, que varia entre os 16% e os 19% de indecisos que não
sabem em quem votar, depois do que ouviram, tão pouco saberão se querem votar.
Os pré-debates
apenas serviram para as televisões encherem chouriços.
Os debates davam
15 minutos a cada candidato e as televisões até às tantas davam pontuações e
sentaram nas cadeiras uma série de comentadores, a esmagadora maioria gente das
direitas, a falar de inocuidades.
Os temas dos debates nunca incluíram a cultura, a justiça, e extraordinariamente, a guerra na Ucrânia, a guerra no Médio-Oriente, como se estas guerras não nos digam respeito, não digam respeito a todas as vidas dos habitantes de todos os países do mundo.
1.
Diz o Expresso:
«Militares em “efervescência” ameaçam sair à rua se
polícias tiverem aumentos. Os sargentos admitem ir para a rua se Governo
mexer nos subsídios das polícias e esquecer a tropa.»
2.
Luís Montenegro prometeu em Vila Real, um dos distritos mais envelhecidos do país e muito dependente da agricultura, mais atenção para o setor primário e para o despovoamento. No teatro municipal, onde encerrou o primeiro dia de campanha eleitoral, comprometeu-se ainda a não cortar as pensões.
3.
Pedro Passos
Coelho estará esta noite num comício da AD em Faro.
A informação foi transmitida por Luís Montenegro aos jornalistas.
4.
Os lucros agregados dos quatro maiores
bancos privados a operar em Portugal somaram 3.153 milhões de euros
em 2023, num aumento de 81,9% face a 2022, segundo contas da Lusa.
Assim, a soma dos resultados líquidos destes bancos foi superior à registada no final de 2022 em 1.419,5 milhões de euros, continuando a ser impulsionados pelo aumento das taxas de juro nos créditos.
5.
O jornalista Fernando Alves vai receber a
Medalha de Mérito Cultural, atribuída pelo Governo português, em reconhecimento
pelo "papel crucial na promoção e divulgação da cultura e da literatura em
língua portuguesa", anunciou o
Ministério da Cultura.
A medalha, que reconhece o "inestimável
trabalho" do jornalista, numa vida "dedicada à rádio", será
entregue pelo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva.
Fernando Alves, 69 anos, autor do programa
"Tão perto, tão longe", da Antena 1, soma mais de 50 de trabalho em
rádio.
"Porque é que
a Cultura vai sempre no fim dos noticiários? Porquê?", interrogava-se
Fernando Alves, em entrevista ao jornal Público, reconhecendo o anúncio do
Nobel da Literatura como uma das poucas exceções.
«Abrem os
noticiários às vezes com banalidades completamente patéticas, uma coisa que um
político disse na véspera e que já foi dita 20 mil vezes. Tens ali um tipo a
descobrir pólvora de outro calibre e fica [a Cultura] para o fim? É a velha
paginação do antes do 25 de Abril: Presidente da República, Governo,
Estrangeiro, Desporto, e Cultura nem conta. Porque é que estamos prisioneiros
dessa arrumação?»
6.
«Quem tem hoje entre 18 e 20 anos e vai votar pela primeira vez a 10 de
Março só conhece, por experiência própria, um país governado por António Costa
e pelo Partido Socialista. Não tem memória de governos anteriores, muito menos
do que foi a construção da democracia e ainda menos do que era um país onde ela
não existia. Não viveu o processo de integração na União Europeia (UE) e o
desenvolvimento do Estado social como hoje o conhecemos.
Os alertas dos jovens que votam pela primeira vez
Muitas das suas causas são frequentemente menorizadas — é o que muitos sentem,
como se lê no trabalho que hoje publicamos. Quantos às preocupações que não são
de hoje, a habitação, a falta de oportunidades, querem mudanças. Por isso, valorizam
o que é novidade, e essa, dizem os especialistas, é a explicação para que as
sondagens nos mostrem uma relação entre ser jovem e intenção de voto em “partidos
novos”, como o Chega, o PAN, o Livre, a IL.
Do editorial do Público de hoje.
7.
Palavras de José Saramago em Novembro de 2009:
«A extrema-direita está aí à espera à porta, e quando digo extrema-direita é uma palavra que não é para disfarçar, porque não quero disfarçar, mas repugna-nos dizer fascismo… Está aí, à espera à porta. Apenas estão a aguardar por uma oportunidade. A Itália é um caso claríssimo em que o fascismo já está no poder. Por isso, o que quero com os meus livros é desassossegar, desassossegar, desassossegar o espírito do leitor e não deixar que durma, despertá-lo. Pôr-lhe a mão no ombro e dizer-lhe: homem, mulher, rapaz, rapariga, desperta. Porque o mal está aí à espera, e depois não digam que não sabiam, que não tinham dado conta.»Muito lamento que o meu-inglês-de-cais-do-sodré não dê
para ler Carson McCullers no original.
Foi, Seve, viajante assíduo do Cais do Olhar, que num comentário disse que havia mais livros de
Carson McCullers traduzidos. Acabei por os encontrar na Relógio d’Água.
Gosto imenso dos que já li: Balada do Café Triste, Coração Solitário Caçador e Reflexo nuns Olhos de Oiro.
Gostei de Relógio Sem Ponteiros mas um poucochinho menos dos atrás citados,.
Carson teve um desastroso e conflituoso casamento
com Reeves McCullers,que considerava «o homem mais belo que alguma vez vira».
Há quem diga que os livros de Carson abordam sempre Os mesmos temas, o isolamento espiritual dos inadaptados e
marginais do Sul dos Estados Unidos, algo que não me incomoda
absolutamente nada, bem pelo contrário
Carson teve uma paixão não correspondida com a escritora
Djuna Barnes.
Deixou uma autobiografia incompleta, Illumination and Noght Glare:
«Penso que é importante
para as futuras gerações de estudiosos saber porque é que fiz certas coisas, e
isso é também importante para mim. Tornei-me rapidamente uma figura literária
conhecida, sendo demasiado jovem para compreender o que me estava a acontecer
ou a responsabilidade que implicava. Senti uma espécie de terror sagrado. Foi
isso que, combinado com a minha doença, cedo me destruiu. Talvez, se registar e
preservar para outras gerações o efeito que o ~exito teve em mim. Permita que
futuros artistas aceitem melhor o facto.»
Nascida em 19 de Fevereiro de 1917, em Columbus, Georgia,
Carson McCullers morreu, com 50 anos, em Nyack, no estado de Nova Iorque, no
dia 29 de Setembro de 1967.
Relógio Sem Ponteiros
Carson McCullers
Tradução e notas:
Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Carlos César
Vasconcelos
Relógio d’Água Editores, Lisboa, Novembro de 2017
Grown Boy, que muitas vezes aparecia à hora do almoço, estava especado a observar Wagon, o qual, em vez da costumada sanduíche de carne, comia frango frito com a graça delicada e calma com que as pessoas de cor comem frango.
ORFEU STAT 002
Editado em 1968
Capa de Fernando Aroso
Acompanhamento à viola: Rui Pato
Som e mistura: Moreno Pinto
Face 1
Natal dos Simples – Letra e Música José Afonso
Balada do Sino – Letra e Música José Afonso
Resineiro Engraçado – Letra e Música de uma canção popular da Beira Alta
Canção de Embalar – Letra e Música José Afonso
O Cavaleiro e o Anjo – Letra e Música José Afonso
Saudadinha – Letra e Música canção tradicional dos Açores
Face 2
O Tecto na Montanha – Letra e Música José Afonso
Endechas a Bárbara Escrava – Letra Luis de Camões Música José Afonso
Chamaram-me Cigano –Letra e Música José Afonso
Senhora do Almortão – Letra e Música do folclore da Beira Baixa
Vejam Bem – Música e Letra José Afonso
Cantares de Andarilho – Letra de António Quadros (pintor) Música José Afonso
O poeta António Cabral, numa introdução às Canções de José Afonso a determinado
passo cita Luis Góis: «fado de Coimbra nunca existiu. Existiu, sempre,
isso sim, um estilo de interpretar próprio de Coimbra.» e quase de
imediato cita o próprio José Afonso: «designei as minhas primeiras canções
por baladas não porque soubesse exactamente o significado desse termo, mas para
as distinguir do fado de Coimbra que comecei por cantar e que, quanto a mim,
atingira uma fase de saturação.»
É dentro deste espírito que surge Cantares do Andarilho e pode dizer-se que este disco é um vendaval que desaba sobre a música portuguesa, que transforma a balada numa arma interveniente contra a ditadura. Tal como escrevera Manuel Alegre:
«só cantando se pode incomodar
quem à vileza do silêncio nos obriga.
eu venho incomodar.
trago palavras como bofetadas
e é inútil mandarem-me calar.
Mas foram eles, aqueles a quem, depreciativamente, chamaram baladeiros que
abriram janelas onde nem paredes havia.
Palavras de Urbano Tavares Rodrigues na contra capa:
« A
noite das lágrimas e da raiva. A madrugada das carícias e do sorriso. O dia
claro da festa colectiva. Tudo isso se encontra na poesia cantada de José
Afonso, cantada por José Afonso. A luminosa gargalhada do povo, o seu suor de
sangue, nas horas de esforço ingrato e de absurda expiação. O lirismo
primaveril e feminino das bailias que não morreram. E o orvalho da esperança. E
os ecos de um grande coro de fraternidade sonhada e assumida. José Afonso,
trovador, é o mais puro veio de água que toma o presente em futuro, que à
tradição arranca a chama do amanhã. No tumulto da contestação, na marcha de
mãos dadas, com flores entre os lábios, é ele a figura de proa, o arauto, o
aedo, o humilde, o múltiplo, o doce, o soberbo cantador da revolta e da
bonança. Singelo José Afonso do Algarve doirado, dos barcos de vela panda, do
Alentejo infinito sem redenção, dos pinhais da melancolia, dos amores sem
medida, do sabor de ser irmão... José Afonso é a primeira voz da massa que
avança em lume de vaga, é a mais alta crista e a mais terna faúlha de luar na
praia cólera da poesia, da balada nova.»
Uma prosa de Gonçalo Frota,
citada no site da Associação José Afonso, conta que José Afonso concorreu ao Festival da Canção da Televisão:
«Um dos temas incluídos em Cantares do Andarilho, "Vejam Bem", havia sido pensado originalmente para participar no Festival RTP da Canção. Os mesmos amigos de A Brasileira que assistiram ao nascimento de um novo Zeca Afonso, haviam de incentiválo a concorrer e como a resposta do músico aconteceu sob a forma de pergunta "o que é preciso fazer?", a resposta seguinte foi colocada nas mãos de Rocha Pato. O jornalista telefonou aos colegas do Primeiro de Janeiro em Lisboa e estes informaramn o que era necessário enviar uma cassete e uma partitura dentro de um envelope sem nome. "Partitura?!" – olharam uns para os outros. "Mas quem é que pode saber fazer uma partitura?". Talvez o senhor Pires, vendedor numa loja de electrodomésticos da cidade, a quem frequentemente Zeca e Rui Pato compravam uns discos. Acontece que o homem tocava saxofone na banda da Pampilhosa – o que, desde logo, indiciava alguns conhecimentos mínimos de teoria musical. Chegados à loja, cumprimentaram o vendedor e logo fizeram soar um "Oh senhor Pires, se a gente lhe cantarolasse uma cantiga você passava isso a partitura?". "Então não passava!". O resto vem pela voz da memória de Rui Pato: "O Zeca sentou-se lá na loja dos frigoríficos, comigo e com o senhor Pires a ouvir, ele ia cantando e eu com a viola ia ajudando, e o tipo escreveu aquilo tudo". A música acabou por não ser seleccionada, num ano (1967) em que o vencedor foi Eduardo Nascimento com "O Vento Mudou". E o vento, de facto, começava a mudar. Na vida de Zeca Afonso, na sua música, em toda a que se fazia à sua volta e, em breve, no seu país.»
Como um vidro estalado… A quem me ler
Não direi, já agora, se esta imagem
Vem serena dos ramos que perderam
As folhas contra o céu, ou se mastigo
Qualquer raiva escondida.
Como doendo, ou sendo, ou mastigando,
Sejam rendas aéreas, alma ferida,
Fecho, brusco, o poema onde não digo.
José Saramago em Provavelmente Alegria
Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João
Bénard da Costa
Será um desfilar de
histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias,
figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação
do dia, mês, ano em que aconteceram.
Será um desfilar de
histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias,
figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação
do dia, mês, ano em que aconteceram.
Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.
Quando se fala de José Afonso, é sempre escasso o tempo que se lhe dedica.
Que me lembre, nunca o tratei por Zeca, não
me perguntei porquê, mas se insistirem, direi que não gosto!
Com um misto de raiva e decepção, verifico
que, neste Cais do Olhar não está referida uma boa série de discos do José
Afonso que se encontram na Biblioteca da Casa.
E isso é já tarefa para amanhã!
Falar de José Afonso é lembrar aquela canção dos Vampiros, que comiam tudo, não deixavam nada
É domingo e
Abril está quase aí.
Nestas Viagens Por
Abril ainda ficamos com José Afonso.
Sem muitos o saberem,
o Dia das Surpresas estava em construção.
Neste caminhar do 25 de Abril pelo tempo, há quem pergunte se foi cumprido o que, por aqueles tempos, foi prometido ao povo.
Há um poema de José Saramago em que se pode ler:
«O homem diz que sabe o caminho, mas não acrediteis porque o homem não sabe o caminho e há sessenta séculos que o homem diz: Eu sei o caminho mas nós sabemos que o homem não sabe o caminho e outros sessenta séculos ouviremos o homem dizer: Eu sei o caminho mas o pobre do homem não soube, não sabe, nem saberá jamais o caminho.»
Não sei das contabilidades do que se cumpriu ou não cumpriu.
Pelo menos sei de uma: o fim da guerra colonial!
Lembram-se das palavras de morte que o botas-ditador-de-santa-comba
nos lançou?
«A Pátria não se discute, defende-se!»
Mas qual pátria?
Toda uma juventude serviu de carne para canhão para defender o que nem sequer era nosso.
O Jorge de Sena tem um poema, simplesmente arrepiante, que marca o quanto foi possível aqueles ditadores de pacotilha terem resistido tanto tempo:
«Uma vez eu, chegando a Portugal
após muitos anos de ausência minha e alguns
de guerras africanas, encontrei uma vizinha
muito estimável que era casada com
um operário categorizado e antigo republicano.
O filho dela estava nas Africas, arriscando
a vida dele e a dos outros em defesa
do património da pátria de alguns (muito mais
que das gerações brancas que vivem nas Áfricas).
Eu condoí-me, todo embebido de noções políticas.
E ela, com um sorriso resignado, respondeu-me:
- Pois é, mas ele está a ganhar tão bem!»
Esta Balada, de imediato proibida de ser ouvida na rádio, proibido de ser vendido aquele Ep, música e palavras que marcaram a luta contra a ditadura de Salazar/Caetano.
Uma mensagem dura e crua, uma canção daqueles tempos mas também de todos os tempos.
Hoje, por
exemplo.
Viriato Teles
em As Voltas de Um Andarilho salienta que Os Vampiros
é o primeiro tema vincadamente político de José Afonso mas admite, citando
alguns companheiros de então, que não terá sido uma intenção social.
José Afonso sobre isso, disse que «a música é comprometida quando o músico, como
cidadão, é um homem comprometido. Não é o produto saído do cantor que define
esse compromisso mas o conjunto de circunstâncias que o envolvem histórico e
político que se vive e as pessoas com quem ele priva e com quem ele canta.
Foi o tempo em que nos jornais, para que a coronelada-censória-analfabeta não topasse assim tão de repente, o nome do José Afonso era assim escrito:
osnofAèsoJ
Urbano Tavares Rodrigues e o texto que escreveu, em 1968, para ser publicado no LP Cantares do Andarilho:
«A noite das lágrimas e da raiva. A madrugada das carícias e do sorriso. O dia claro da festa colectiva. Tudo isso se encontra na poesia cantada de José Afonso, cantada por José Afonso. A luminosa gargalhada do povo, o seu suor de sangue nas noras de esforço ingrato e de absurda expiação. O lirismo primaveril e feminino das bailias que não morreram. E o orvalho da esperança. E os ecos de um grande coro de fraternidade sonhada e assumida. José Afonso, trovador, é o mais puro veio de água que torna o presente em futuro, que à tradição arranca a chama do amanhã. No tumulto da contestação, na marcha de mãos dadas, com flores entre os lábios, é ele a figura de proa, o arauto, o aedo, o humilde, o múltiplo, o doce, o soberbo cantador da revolta e da bonança. Singelo José Afonso do Algarve doirado, dos barcos de vela panda, do Alentejo infinito sem redenção, dos pinhais da melancolia, dos amores sem medida, do sabor de ser irmão. José Afonso é a primeira voz da massa que avança em lume de vaga, é a mais alta crista e a mais terna faúlha de luar na praia cólera da poesia, da balada nova».
Contrato Social
Jean-Jacques Rousseau
Tradução e Prefácio: Mário Franco de Sousa
Capa: A. Dias
Colecção Clássicos nº 16
Editorial Presença, Lisboa, 1966
Entro na matéria
sem provar a importância do meu tema. Irão perguntar-me se sou príncipe ou
legislador para escrever sobre politica. Responderei que não, mas é
precisamente por essa razão que escrevo sobre este tema. Se fosse príncipe ou
legislador, não perderia o meu tempo a dizer o que é preciso fazer; fá-lo-ia ou
calar-me-ia.
De um modo geral ensina-se muito mal nas escolas. A poesia, por exemplo.
No seu livro A Louca da
Casa, Rosa Montero lembra uma frase de Franz Kafka:
«Se o livro que lemos não nos acorda, como um murro na
cabeça, para que o lemos?»
Santa-Bárbara, Capista de Zeca
Abel Rosa
Capa: José Santa-Bárbara
Lusitanian, Lisboa, Outubro de 2023
Do convívio com José Afonso nasceu um grande desafio: “Olha lá, tu
não queres fazer a capa do meu novo disco?”
Como recusar? Assim começou uma parceria que teve início com o LP Traz
Outro Amigo Também, editado pela Orfeu.
Um trabalho memorável, imaginativo e arrojado. Quando Santa-bàrbara
perguntava a José Afonso qual a ideia que tinha para a capa, a resposta era: “Tu
é que sabes, lê os poemas… desenrasaca-te!”
Colaboração de Aida Santos.
Este não é o dia seguinte do
dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram
Não sei se terei tempo para viajar por Abril com todos aqueles que escreveram, cantaram, representaram,
fotografaram, sei lá que mais.
Vamos caminhando.
Pertence a Sérgio Godinho a mais feliz definição de José Afonso:
Abriu janelas onde nem paredes havia.
José Afonso disse:
«Já fui andarilho e cantor,
Bendito seja o pão, Bendita seja a dor, Bendita as portas do amor!»
Autodefinindo-se numa entrevista a José Amaro Dionísiso, Expresso, 15 de Junho de 1985.
«… talvez no fundo eu seja um homem mal resolvid».
Na revista K de Agosto de 1992:
«Quando há alguém maior do que o tempo, só podemos ficar gratos. Quando é português, só podemos ficar orgulhosos. As canções de José Afonso são tão bonitas e importantes que não se consegue imaginar a sua ausência. Vivem de um tempo para a eternidade, como tudo o que é genial e belo. Toda a obra de José Afonso está agora reeditada em CD. Não deve ser preciso dizer mais nada.»
Mais palavras do José Afonso:
«Sem muros nem ameias, gente igual por dentro e por fora».
«O medo foi sempre um sentimento que conviveu comigo. O medo a que se sobrepunha uma sensação de angústia, género «como é que me vou comportar em tal ou tal situação?»
José Afonso das suas muitas e bonitas canções:
«Amigo maior que o pensamento.»
«Um dia hás-de aprender haja o que houver».
João de Freitas Branco:
«Se os encartados arrumadores de música persistirem, mesmo assim, em recusar à obra de José Afonso um lugar na categoria da música «clássica» que se apressem a rever a sua definição desta, antes que, por completo, os deixemos de tomar a sério.»
Entrevista a O Diário , Janeiro de 1983:
«Sou fruto de muita gente,
de muitos lugares e dissabores.»
Entrevista Alexandre Manuel ao Diário de Notícias de 28de Abril de 1984
«Nunca tive prazer em fazer música.»
José Afonso ao Cinéfilo, de Novembro de 1973, Cinéfilo de
muito boa memória,concedeu uma entrevista conduzida pelo António Pedro de Vasconcelos, Eduardo
Guerra Carneiro, James Anhanguera, com uma bela capa de Luís Filipe
Conceição, que podem ver aí em cima, «julgamos que se trata de uma
entrevista bastante importante para se compreender (e julgar) a obra e a
carreira deste homem que se recusa (lucidamente) a transformar-se num mito, ou
num intocável.»
«Eh pá, eu não tenho
nenhum conhecimento científico. Eu sou um total ignorante».
«Eu fiz uma canção (Grândola» que, vendo bem já não me pertence. Agora é mesmo cantada em meios populares. Mas um cantantea com as minhas características tem de fazer canções laboradsa a partir de elçemnetos cukturais que sejam da sua própria experiênca, confinado aos limites da classe a que pertence».
Nas despedidas, no dizer sempre de um vemo-nos quando nos virmos:
… e afinal, eu só queria
dizer que fazes uma falta do caraças!
Olhei as capas dos LPs do José Afonso, os lados A e B, na vã tentativa
de encontrar uma canção para esta manhã, para esta Viagem com o José Afonso.
O olhar deu em nada.
Fica uma canção lindíssima, tão simples, tão comovente: poema de José Carlos Ary dos Santos, música de José Afonso que faz parte do álbum «Contos Velhos, Novos Rumos»:
Os ingleses utilizam a expressão «deitar veneno no champanhe» para designar a atitude de quem vai estragar um clima de festa e de alegria com atitudes despropositadas e conflituosas.
Este não
é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.
Quando é que o 25 de Abril começou a desenhar-se?
O descontentamento entre os militares face à guerra colonial estava em
crescendo.
Pessoalamente admito que o 25 deAbril despoleta no dia em que o
Decreto-Lei nº 353/73 de 13 de Julho, que se pode ver no topo do texto, e que
se transforma em pedra de toque desestabilizadora num conflito que estava
latente entre os militares das armas de infantaria, artilharia e
cavalaria.
Mas os próprios militares determinam que o “Movimento dos Capitães”
nasceu em Évora, numa reunião alargada, no dia 9 de Setembro de 1973.
Há quem tenha a opinião que o 25 de Abril começa a 23 de
Fevereiro de 1974, quando de bota-alta-de-cavalaria e pingalim, o General
António de Spínola, com chancela da “Arcádia”, publica o livro Portugal
e o Futuro.
Alguns historiadores dizem que Marcelo Caetano acabou a leitura do
livro na madrugada do dia 21 e logo admitiu o que há muito suspeitava: o regime
estava por um fio.
Artur Portela Filho, no República de 11 de Março de
1974, terminava assim uma carta dirigida ao General Spínola: «Portugal
e o Futuro surge como “o livro esperado”.
É possível, mas por quem?
Pela nossa parte o livro a
escrever não é este – é outro.
E será uma obra
colectiva.”»
Dois dias depois do levantamento de 16 de Março de 1974, protagonizado
pelas tropas do Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha, Vergílio
Ferreira, no 1º volume do seu Conta-Corrente, escreve:
«O livro de Spínola
alastrou numa revolta militar frustrada. O livro? Há um clima deinquietação, um
cansaço do provisório em que vivemos. O difícil da questão é que solução alguma
coisa se nos impõe como boa. Há que escolher a menos má. Qual? A África é dos
pretos que “exploramos” há quinhentos anos. Exploramos? Só? Mas como aguentar o
embate da separação? O recurso seria retroactivo: termo-nos preparado para
isso. Mas Salazar, como certos bichos, o que entregou foi pedra. Dizem-me: o
Marcelo quer aguentar a guerra até estarmos preparados. Mas o desgaste não vai
mais depressa que a preparação? Tentamos acumular de um lado, enquanto gastamos
do outro Qual o saldo? Entretanto, ainda se recorre à retórica imperial. “Deus
manda combater, não vencer, diz Marcelo. Mas Deus manda o que lhe mandamos
mandar. Deus de paz, Deus carniceiro, Deus celeste ou terreno. O Deus de
Marcelo não é muito inteligente. Ou estará simplesmente enrascado, sem saber o
que fazer».
Sabe-se hoje que o livro não foi escrito por Spínola, mas por um
capitão de artilharia, que mais tarde lhe escreveria também os discursos.
O Diário de Lisboa de 19 de Janeiro de 1976 publica um
depoimento do “escritor-fantasma” que considera Spínola um “vaidoso,
demagogo e intelectualmente preguiçoso, mas com uma memória notável.”
Em 19 de Agosto de 1976 escreve Meira Burguete no Diário
Popular:
«Spínola entrou (?) numa revolução (?) que quis corrigir (?) ou
destruir (‘) uma outra revolução que não teria seguido o cariz que o Spínola
queria.».
Vicente Jorge Silva no Público de 14 de Agosto de 199:
«O Marechal Spínola ficará
para a História não por qualquer feito militar de relevo ou pela sua actividade
militar mas por ter escrito um livro. O 25 de Abril não foi obra de um livro.
Mas sem esse livro e sem a assinatura do seu autor, é provável que o
sobressalto libertador que uniu então as Forças Armadas não tivesse sido
possível.»
O Marechal Costa Gomes na entrevista recolhida para o projecto de História
Oral do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coinbra,
disse:
«O General Spínola tece sempre contradições enormes entre o que julgava intimamente poder fazer e o que fazia. Interiormente, foi sempre um ditador potencial. Não evoluiu nada desde que saiu da Escola do Exército até ser governador da Guiné.»