domingo, 17 de janeiro de 2016

OLHAR AS CAPAS



Os Homens Cantam a Nordeste

António Cabral
Colecção Nova Realidade
Edição do autor, Coimbra s/d

Oito Dias de Nevoeiro

Continuamos sob o nevoeiro
mas sabemos que o sol anda na serra
e encosta a face morna à virgindade das coisas,
tocando-a com um hálito muito doce.

Aqui estamos sob um tecto mole,
chumbo respirado ou a carne
dum monstro espacial.
Os lavradores assobiam para dentro
e os mais necessitados
engolem os projectos com a saliva.

Claro que ninguém tem culpa.
Assim fosse no resto. Mas custa
estar, há oito dias, sob esta pata
viscosa, esta enorme sanguessuga
que chupa até os tegumentos da alma.

É como se estivéssemos debaixo
dum telhado prestes a cair.
As crianças arqueiam os ombros;
põem as mãos nos bolsos, à semelhança
de isqueiros avariados nas gavetas;
passam indiferentes pelos gatos,
pelos pardais, e entristecem.

Ontem sabemos que um avião
deslizou por cima do visco.
Era uma voz coada, nasal,
proveniente dum outro mundo,
dum mundo que suavemente se consome
nas imensas fogueiras da luz.

Um avião passou sobre as nossas cabeças.
Paris? Amesterdão? Londres? Berlim?
Passou, talvez, para outro nevoeiro.
Mas passou, e lá dentro
havia, pelo menos, a certeza
de que o nevoeiro é um fenómeno

tão natural como duzentos contos
ganhos na assinatura dum contrato.
Nós aqui mal respiramos, nesta rampa
inclinada para o rio;
nesta rampa onde os músculos
não obedecem à vontade.

Aqui o nevoeiro é a vontade.
Pouca gente trabalha.
Os pardais e as crianças andam tristes.
Valha-nos Deus
e um caldinho de cebola bem quente.

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