quarta-feira, 25 de abril de 2012

UMA REVOLUÇÃO PARADA NO SINAL VERMELHO



Era uma vez, no ano de 1974, a madrugada de vinte e cinco, de um Abril português.

Às 22h 55, João Paulo Dinis, diz, aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa, que faltavam cinco minutos para as 23h00 e anunciando que Paulo de Carvalho vai cantar E Depois do Adeus.

ÀS 00h29, no programa Limite da Rádio Renascença, começam a ouvir-se os passos cadenciados que, José Mário Branco inventara para Grândola Vila Morena do álbum Cantigas do Maio de José Afonso, e são declamadas as primeiras estrofes da canção:

Grândola Vila morena, terra da Fraternidade, o Povo é quem mais ordena dentro de ti ó cidade.

Começavam a nascer as cores vibrantes dos sonhos de uma geração, quase perdida, que vivia dentro do medo.

Sabemos hoje, que a alegria desses sonhos, converteu-se, aos poucos, em algo de muito doloroso…

Nem nos piores pesadelos, essa geração, pressentiu que chegaríamos ao ponto onde hoje nos colocara, deixámos que nos colocassem.

Relato de um capitão de Abril, Salgueiro Maia de seu nome:

Quando, pelas 3 horas da manhã de 25 de Abril, saímos da EPC, o carro da PIDE e o agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) que costumava estar junto ao mercado municipal tinham desaparecido. Soube depois que avisaram Lisboa, mas, por exemplo o comando da PSP não se preocupou, por considerar que devíamos estar a sair para exercícios.

Também à entrada do Campo Grande, em Lisboa, ouvi, num dos meus rádios, um carro patrulha da PSP a informar o respectivo Comando da nossa passagem, bastante impressionado com o número de metralhadoras que via passar.

Enquanto ouvia estas informações, o jipe trava de repente e dou comigo parado no sinal vermelho do cruzamento da cidade Universitária. Olho para o lado e vejo um autocarro da Carris também parado. Achei que era de mais parar a Revolução ao sinal vermelho, quando o que distinguia os carros do MFA era um triângulo vermelho no lado esquerdo das viaturas ou tapando a matrícula. Mando avançar tocando as sirenes das autometralhadoras EBR até chegar ao Terreiro do Paço.(…)

Pelas 7 horas, no Terreiro do paço, surgem dois repórteres. Perguntam se podem tirar fotografias e conversar com as pessoas. Respondo-lhes: “À vontade, é também para garantir isso que nós aqui estamos.” Olham-me com um certo ar de espanto e vão à vida.

Um furriel vem trazer-me uma senhora funcionária da limpeza dos CTT do Terreiro do Paço; diz que quer á viva força ir para o trabalho, e como tal atravessar o largo. Quando chega junto de mim, com ar de desânimo diz-me: “Tenho de ir trabalhar e o senhor tem de me deixar passar!” Replico-lhe: “Não se preocupe, porque hoje, e daqui para o futuro, o 25 de Abril vais ser feriado nacional.” A mulher olha-me com ar de quem mada mais tem a fazer e volta para o lado da Estação Marítima do Sul e Sueste, dizendo talvez para ela que “aquele tipo é mesmo doido.

O capitão parte do Terreiro do Paço, para subir até ao Largo do Carmo. E conta:

Quando regressei ao quartel, dirigi-me ao comandante e disse-lhe que, se ele não mandava, então eu queria falar com quem mandasse. Conduziram-me à presença de Marcello Caetano; mas para isso passei por uma antecâmara, onde encontravam Moreira Baptista e Rui Patrício, chorando este como uma criança, olhando o infinito o primeiro.

Dessa reles cobardia, de quem se considerava resguardado no medo que infligia a todo um povo, o Diário de Lisboa, colocará em caixa:

Massacravam-nos os ouvidos com afirmações de coragem.

Diziam que se, se alguma vez o chamado estado Novo corresse perigo, iriam dar tiros para a rua.

Afirmavam-se prontos a morrer.

Juravam, rejuravam e trejuravam que o Povo só chegaria ao poder passando por cima dos seus cadáveres.

Gritavam aos quatro ventos que iriam vender cara a vida.

Consideravam-se soldados de uma guerra gloriosa.

Não perdiam uma ocasião de proclamar o desejo que tinham de provar a sua fidelidade vertendo, para tal, o seu próprio sangue.

Arrotavam postas de valentia.

As suas permanentes gabarolices, infantis e monocórdicas, tinha-nos levado a crer que, no dia da mudança, iriam dizer qualquer coisa.

Dar um grito, por exemplo, um grito, um suspiro, um soluço…

Mas nem isso.

No dia vinte e cinco de Abril os heróis do palavreado não cumpriram uma única das promessas que tinham feito.

Perderam o pio.

Regressamos ao relato do Capitão:

Marcello estava pálido, barba por fazer, gravata desapertada, mas digno.
Fiz-lhe a continência da praxe e disse-lhe que queria a rendição formal e imediata. Declarou-me já se ter rendido ao Sr. General Spínola, pelo telefone, e só aguardava a chegada deste para lhe transferir o Poder, para que o mesmo não caísse na rua!
Estive para lhe dizer que estava lá fora o Poder no povo e que este estava na rua.

Provavelmente, inspirado por estas palavras do Capitão, José Carlos Ary dos Santos,  há-de escrever:

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Fontes: Capitão de Abril: Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril de
             Salgueiro Maia, Editorial Notícias, Lisboa Novembro de 1997.
             As Portas Que Abril Abriu, Editorial Comunicação, Lisboa Novembro de 1975.

Legenda: fotografia de Alfredo Cunha.

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