Rútilo é o «I»
Pedro Alvim
Capa: José
Araújo
Editorial
Caminho, Lisboa, Junho de 1980
Então o pai não era o que o pai agora é. Agora
atravessa o corredor numa bengala, mede os passos da rua para o quarto, longos
como prosa, não breves como versos. A todos, cauteloso, exige que dê fruto: a
sopa quente, o jornal desdobrado, o cigarro aceso, o chá no fim da noite, o
chapéu no cabide, os sapatos sob a cama. Quando, entre janelas, se demora nos
plátanos despi8dos de Janeiro, diz que os plátanos têm de ser podados, e
pensativo ignora que o tempo o vai podando dia a dia, folha a folha, ramo a
ramo, cada vez mais diminuta sendo a sombra que o seu corpo projecta sobre as
coisas que vão acontecendo. Há muito que não abre um livro, e das razões não
diz mas adivinham-se: as folhas lembram-lhe o passar dos dias – e as palavras
inscrições em mármore branco. Já não tem métrica, já não tem rima, está fora do
ritmo de tudo. Uma última coragem lhe vem à boca em sílabas rasteiras – e é quando,
parado para sair, diz «É o calo.» Mas não é: o coração pesa-lhe ao longa da
perna esquerda, imobiliza-lhe os músculos, seca-lhe as artérias – e ei-lo pois
parado para sair, a bengala como umo um pêndulo, entre a prosa e o verso,
sabendo o que é, mas dizendo «É o calo na sola do pé.»
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