quarta-feira, 3 de junho de 2015

OLHAR AS CAPAS


Rútilo é o «I»

Pedro Alvim
Capa: José Araújo
Editorial Caminho, Lisboa, Junho de 1980

Então o pai não era o que o pai agora é. Agora atravessa o corredor numa bengala, mede os passos da rua para o quarto, longos como prosa, não breves como versos. A todos, cauteloso, exige que dê fruto: a sopa quente, o jornal desdobrado, o cigarro aceso, o chá no fim da noite, o chapéu no cabide, os sapatos sob a cama. Quando, entre janelas, se demora nos plátanos despi8dos de Janeiro, diz que os plátanos têm de ser podados, e pensativo ignora que o tempo o vai podando dia a dia, folha a folha, ramo a ramo, cada vez mais diminuta sendo a sombra que o seu corpo projecta sobre as coisas que vão acontecendo. Há muito que não abre um livro, e das razões não diz mas adivinham-se: as folhas lembram-lhe o passar dos dias – e as palavras inscrições em mármore branco. Já não tem métrica, já não tem rima, está fora do ritmo de tudo. Uma última coragem lhe vem à boca em sílabas rasteiras – e é quando, parado para sair, diz «É o calo.» Mas não é: o coração pesa-lhe ao longa da perna esquerda, imobiliza-lhe os músculos, seca-lhe as artérias – e ei-lo pois parado para sair, a bengala como umo um pêndulo, entre a prosa e o verso, sabendo o que é, mas dizendo «É o calo na sola do pé.»

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