sexta-feira, 2 de outubro de 2015

OLHAR AS CAPAS


E Agora, José?

José Cardoso Pires
Moraes Editores, Lisboa, Novembro de 1977

De resto quem te ouve? Quem dá crédito à tua liberdade? Vamos, fuma, José. Pensa bem esse cigarro. Mede e golpeia a memória, repisa nos teus avisos enquanto o cabelo te embranquece. Olha, é entardecer. E está tão claro.
A´, nesse espelho, há um não sei quê de pobre diabo no cidadão que te faz frente, aferrado a um orgulho pacato. Orgulho? Pior para ele, que pouco fez para mudar as coisas e muito para não se deixar mudar. Razão? Vigilância? Está bem, deixa-o dizer.
Deve andar nos cinquenta, mais ano, menos ano, e se calhar é por isso que te sonda com tamanha inclemência. Cinquentas, meio século de vislumbrada malícia de si mesmo e de nicotina. Cancro apalavrado, ai coitadinho. De quando em quando noto-lhe talvez um perpassar de ironia a traquinar-lhe no rosto, mas se o tem em luz breve e para mais magoada. Não dá sequer para temperar o ar endurecido que há nele e que provém mais do desalinho e do à-balda que doutra coisa. No resto, pouco a acrescentar. Visagem martelada, máscara prevenida, assimetrias de quem se talhou ao azar – e disse. Acta est fabula, se assim me posso exprimir.
É este o homem que te contempla. José. Que te fuma. Que te duvida.

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