quinta-feira, 29 de outubro de 2015

SARAMAGUEANDO


Um velho recorte do Diário de Lisboa de 29 de Outubro de 1988

De uma velha conversa com Baptista Bastos:

Eu diria que vivi tudo o que vivi para poder chegar a ela. A Pilar deu-me aquilo que eu já não esperava vir a ter.

Dedicatória de As Pequenas Memórias:

A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar.

Pilar del Riolera O Ano da Morte de Ricardo Reis. 

Tanto gostou que disse a si mesmo que visitaria o autor para lhe agradecer tratar tão bem os seus leitores e fazer o percurso que vem no livro: Hotel Bragança, Cemitério dos Prazeres, Alto Santa Catarina, por aí fora.

Telefonou a Saramago e encontraram-se num hotel para um café.

Excepção feita a Manual de Pintura e Caligrafia e, naturalmente, em As Pequenas Memórias, Saramago sempre foi parco em deixar pedaços da sua vida nos livros.

A excepção é o encontro com Pilar.

Está na pág. 119 de Jangada de Pedra: 


Tem ali uma senhora à sua espera. Parou José à entrada da sala, viu uma mulher nova, uma rapariga, só pode ser esta, não há aqui outra pessoa, apesar de estar na contraluz dos cortinados das janelas parece simpática, ou mesmo bonita, veste calças e casaco azuis, de um tom que deve ser anil, tanto pode ser jornalista como não, mas ao lado da cadeira onde se senta tem uma pequena mala de viagem e sobre os joelhos um pau nem pequeno nem grande, entre um metro e um metro e meio, o efeito é perturbador, uma mulher assim vestida não se passeia pela cidade de pau na mão, Jornalista não será, pensou José Anaíço, pelo menos não estão à vista os instrumentos do ofício, bloco de papel, esferográfica, gravador.
A mulher levantou-se, e este gesto inesperado, pois está dito que as senhoras, segundo o manual de etiquetas e boas maneiras, devem esperar nos lugares que os homens se aproximem e as cumprimentem, então oferecerão a mão ou darão a face, de acordo com a confiança e o grau de intimidade e sua natureza, e farão o sorriso da mulher, educado, ou insinuante, ou cúmplice, ou revelador, depende. Este gesto, talvez não gesto, mas o estar ali, a quatro passos, levantada uma mulher esperando, ou, em vez disso, a súbita consciência de se ter suspendido o tempo enquanto não for dado o primeiro, é verdade que o espelho é testemunha, mas de um momento anterior, no espelho José Anaíço e a mulher ainda são dois estranhos, deste lado não, aqui, porque vão conhecer-se, conhecem-se já. Este gesto, este gesto de que antes não se pôde dizer tudo, fez mover-se o chão de tábuas como um convés, o arfar de um barco na vaga, lento e amplo, esta impressão não é confundível com o conhecido tremor de  que fala Pedro Once, não vibram, de José Anaíço os ossos, mas todo o seu corpo sentiu, física e materialmente sentiu, que a península, por costume e comodidade de expressão ainda assim chamada, de facto e de natureza vai navegando, só o saiba por observação exterior, agora é por sua sensação própria que o sabe.

Legenda: A fotografia do Hotel Bragança, finais dos anos 50, é tirada do blogue Restos de Colecção. 

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