quinta-feira, 25 de julho de 2024

TELEGRAMA SEM CLASSIFICAÇÃO ESPECIAL

                                                           Ao Egito Gonçalves

 

Estamos nus e gramamos.

 

Na grama secular um passarinho verde

canta para um poema lírico, para um poeta lírico, 

que se nasceu

é certo que não cantou.

 

As paisagens continuam a existir.

As paisagens são suaves.

Continuam também a existir

outras coisas

que dão matéria para poemas.

A vida continua.

Felizmente que há ódios, comichões, vaidades.

A estupidez, esta crassa crença intratável, esta confiança

             indestrutível em si mesmo,

é o que felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.

 

Num mundo descoroçoante de puras imagens

é bom este banho de resistências, pressões, vontades, atritos,

é bom navegar.

porque este presente é logo saudoso.

 

Na grama um passarinho canta.

Evidentemente que o poeta suicidou-se.

 

A vida continua.

Certas coisas que pareciam mortas

estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.

Ausentes, dominam-nos.

Não é para nós que utilizam as palavras, 

que insistem,

não é para nós!

Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos

fluem em visões, em ondas, como se não no presente.

Ter-se-á o presente extinguido?

A vida continua tão improvávelmente.

 

Na grama um passarinho canta.

Canta por cantar, ou não, canta.

 

Eu poderia, com rigor, agora

cantar:

                      Os anjos exactos

                      que empunham tesouras

                      de encontro aos factos

                      - ó minhas senhoras!

 

Ou rigorosamente ainda,

com veemente exactidão,

inutilizar o poema,

todos os poemas

 

porque

 

Estamos nus e gramamos.


António Ramos Rosa de Viagem Através de uma Nebulosa em Obra Poética Vol. I

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