sábado, 16 de abril de 2011

IDÍLIO EM BICICLETA



“Cheguei a Ipiales com “pressa” de passar a fronteira para o Equador, pois queria ir dormir a San Gabriel, para no dia seguinte chegar a Otavalo, encontrar-me com o Luís Hilário, que lá me esperava há um par de dias.

Na estrada para a fronteira, a confusão de trânsito era enorme, em contraste com a pacatez das demais ruas da cidade. O motivo, era uma enorme manifestação que seguia umas centenas de metros adiante. É claro que não sabia qual o móbil, nem a rota que seguiria. Poderia ter perguntado aos polícias que marchavam atrás, mas o bichinho estava à solta e decidi juntar-me à massa humana, em marcha lenta.

Aproximei-me lentamente da retaguarda da manifestação, desmontei da bicicleta e cheguei-me o mais possível dos manifestantes. À minha frente marchavam homens e mulheres de todas as idades. De estatura baixa, olhos negros e cabelo de pez, pele curtida por séculos de vivência com a natureza bravia, uns de chapéu andino na cabeça, outros de coco ao léu, quase todos de traje tipicamente andino, com a inconfundível “manta” enfiada na cabeça. Moviam-se devagar, com passos pesados e rostos carregados, como se estivessem ali a contragosto, como se desprezassem aquele mundo. Lá para diante ouvia-se uma voz metálica e vigorosa, ampliada pelo microfone, gritando palavras de ordem, secundadas por vozes densas que parecem cansadas. Alguns cartazes agitam-se acima das cabeças, com dizeres contra o TLC (Tratado de Livre Comércio entre a União Europeia e a Colômbia).

Pouco a pouco, vou deixando a cauda da manifestação e marcho no meio da multidão. Quero ver mais rostos e mais de perto; quero ver os olhares e a sua expressão – não, quero é sentir esses olhares em mim e tentar perceber se são também contra mim, enquanto “gringo” ou europeu, tanto faz; quero ouvir o silêncio opressivo e as vozes indignadas, receosas, amedrontadas talvez; quero sentir os Andes de carne e osso, através desta massa de indígenas. Encontro respeito, curiosidade, interesse, e respondo a todas as perguntas com a maior cordialidade e solicitude que consigo. Apesar de me sentir num ambiente amistoso e acompanhar muitas das palavras de ordem com tanto ou mais entusiasmo e energia que os manifestantes, sinto-me intruso, a mais, ridículo, quase provocatório. Mas tenho de aguentar até ao fim, pois estou completamente no meio da manifestação e não há estrada, carreiro, ou atalho por onde possa escapar…fui apanhado na minha própria armadilha.
Não conheço nada do acordo assinado, tal como a esmagadora maioria dos manifestantes, estou seguro. Mas sinto-me sensorial, emocional e racionalmente solidário com cada uma daquelas pessoas. São agricultores paupérrimos, que vivem essencialmente da produção de leite, que lhes pagam a 200 pesos (8 cêntimos de euro) o litro. Posso dizer que vi as suas “casas” ao longo da estrada; as suas micro-explorações, com menos de meia dúzia de vacas; as suas indumentárias modestas; o seu calçado – quando não andam descalços –; transportarem a vasilha de leite às costas, a cavalo, de bicicleta ou de mota; os filhos iguais aos pais. E principalmente os seus olhares, as suas expressões faciais, os seus corpos mirrados pela dureza da montanha e da vida. E a pergunta é óbvia e simples: como podem os derivados de leite europeu chegar à Colômbia a preços iguais (pouco importa de marginalmente superiores ou inferiores) aos da produção destes agricultores? Somente através da brutal, irracional e criminosa política de subsídios da Política Agrícola Comum… Só essa assassina aberração, criada para “garantir uma certa auto-suficiência alimentar europeia”, e degenerada na produção interminável de excedentes, pode levar à venda de fruta europeia nos mercados africanos ou à venda de derivados de leite em países da América latina, em pseudo-concorrência, banindo os miseráveis produtores locais para a valeta. E depois bramamos contra a produção de droga nestes mesmos países e pregamos de cátedra contra esses bandidos… Hipocrisia e cinismo sem limites…”

Texto e imagem de Idílio Freire

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