sexta-feira, 6 de junho de 2014

POSTAIS SEM SELO


Estou sempre a perder as pessoas. E, nisto, dou por mim a pensar no mar. Às vezes no verão, à noite, o som das ondas chegava ao meu quarto, ritmado, triste, juntamente com o menear dos pinheiros. Na cama sentia-me uma sementinha minúscula, perdida na imensidão da terra. Uma sementinha minúscula, uma partícula de nada. Estou quase em condições de começar um livro, preciso apenas de me esvaziar um pouco mais de mim mesmo, e que a voz que começo a escutar principie a ditar-mo. A primeira frase não me larga a cabeça, há outras que surgem e desaparecem, não se fixaram ainda: tremem ao longe, indecisas. Mas pode ser uma falsa partida. Cesso de escutar o mar.
Parece-me que escrevo esta crónica a fim de habituar a mão ao papel. "Numa boa página de prosa ouve-se a chuva."
Agora escureceu e os candeeiros acesos da rua empalidecem as folhas das árvores. Desde a infância a noite continua a ser um mistério para mim, e a chegada da manhã um lento milagre cor de rosa pálido. Quando estava internado no hospital, sem conseguir mexer-me, esperava por ela numa ansiedade inquieta, implorando, sem palavras
- Salva-me, salva-me.

António Lobo Antunes, de uma crónica na Visão.

Legenda: trabalho de Andrew Baines.

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