Obra Escrita
Volume 3
Volume 3
João César
Monteiro
Coordenação:
Vitor Silva Tavares
Capa: Luís Henriques
Capa: Luís Henriques
Livraria Letra
Livre, Lisboa, Setembro de 2017
João de Deus:
Estás aonde? Em casa ou na fábrica? Esse Tomé só arranja confusões. Não, não.
De amaneira nenhuma. Não te preocupes. Está tudo a andar. O costume. A mulher
da limpeza voltou a não aparecer. Depois vem com umas grandes tretas. É uma
chatice. Mas lá terá que ser… O problema é que não posso deixar isto entregue
aos bichos. Quando o Romão vier. Combino as coisas com ele. Se tiver uma aberta
passo ainda hoje pelo banco e dou uma palavrinha ao gerente. Fica descansada. E
ainda temos quantos quilos em stock? Estamos à vontade. Não senhor. A ideia é
muito simples: deixa-se os clientes a salivar durante uns dias com o anúncio de
esgotado e relança-se o Paraíso em força. . Claro. Com um novo preço que faça
jus à especialidade da casa e à originalidade do sabor. Ò menina, vem no Marx.
Não há omeletes sem ovos. Aumenta os salários que os resultados aparecem. É
elementar e tu sabe-lo por experiência própria: também te saiu do pêlo. Também
fiquei com muito boa impressão, sim senhor. Vive sozinha com a mãe numa
barraca? Também não me pareceu nada doidivanas. A ver vamos, mas uma andorinha
não faz a Primavera. É. De que parte do Minho? Conheço muito bem. Papei por lá,
se não estou em erro, a melhor cabidela da minha vida. É boa gente, lá isso é.
É muito bonita e ainda não perdeu aquela inocência fresca e provinciana. Vou
retocá-la ao gosto das madonnas
venezianas, mas sem apagar os traços rurais. Pode ser um chamariz, pode, mas
toda a sabedoria vai estar no conservá-la. Alguma vez te deixei ficar mal? Ó
Judite, sabes perfeitamente que em serviço não brinco. Está bem. Cá a espero.
Rosário. Rosário quê? Não, não. A mim, essa Francisca nunca me enganou. Vi
logo. Queixa na Judiciária? Não te metas nisso. Não paga o incómodo. Também
está debaixo de olho, mas deixa-a pousar. Não quero levantar a lebre.
Alexandra aparece a abotoar a bata.
João de Deus:
Chaozinho, minha cara, e boas melhoras.
João de Deus desliga o telefone.
João de Deus
(para Alexandra): Mostra-me essas mãos.
Alexandra aproxima-se e estende as mãos a João de
Deus. Este cheira-as.
João de Deus:
Estão lavadinhas. Assim é que deve ser. E queres saber porquê? A razão é
simples e não me canso de a repetir. Uma parte muito substancial dos clientes
desta casa são crianças. Ora., assim sendo, quem quer que seja que trabalhe sob
as minhas ordens é obrigado a lavar as mãos, seja após a utilização das
instalações sanitárias, seja após a extracção de mucos nasais, vulgo macacos,,
por exemplo, sob pena de despedimento imediato e sem prejuízo de ulterior
procedimento criminal. O que está em jogo é a saúde pública. Entendido?
Alexandra acena que sim.
João de Deus: Ao servires um gelado, nunca te esqueças
que, um dia, serás mãe.
(Cena de A Comédia de Deus)
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