terça-feira, 25 de junho de 2019

O RELÓGIO DA TORRE


Quando alguém nos é apresentado como sendo possuidor de determinados dons e qualidades, nós não podemos deixar de relacionar esses predicados com o  reflexo  que eles terão na felicidade comum. E ocorre-nos se podemos realmente participar da boa sorte que essa pessoa sabe atrair com o uso dos seus talentos. Mas talento é uma coisa, e felicidade é outra. Felicidade é o círculo mágico dentro do qual nós desejamos encontrarmo-nos. O que nem sempre acontece. 
Exemplo de uma pessoa feliz é o seguinte: um indivíduo acorda no meio da noite e vê o quarto ligeiramente iluminado. Não sabe se é madrugada ou se o candeeiro da rua projecta o clarão nos vidros da janela. Pergunta para si própria: «Que horas serão?» Nesse preciso momento, o relógio da torre bate duas, três ou seis badaladas. A pessoa fica imediatamente elucidada e dissipa-se o seu problema. Devo dizer que esta hipótese é muito rara.
Outro caso é o de alguém que igualmente acorda fazendo ainda escuro, e pretende saber se a noite vai ou não adiantada. Então o relógio da torre bate uma badalada. A pessoa fica um bocado perplexa. Espera acordada meia hora; o relógio faz ouvir três, cinco ou seis badaladas. Aquela pessoa fica esclarecida. Esta é uma criatura medianamente feliz, pois não teve de esperar muito para que as suas dúvidas se dissipassem.
No terceiro caso, acontece isto: a pessoa, que acordou sobressaltada e sem a noção do tempo, ouve uma badalada. Não sabe se é meia-noite e meia hora, se é uma hora, se é hora e meia da manhã. Espera, e ouve ainda uma badalada. Espera mais... e adormece. Eu ia dizer «e morre», mas não; adormece, e é tudo. Não chega a saber a quantas anda. Esta é uma pessoa sem sorte.
Em qualquer dos casos, o que acontece nada tem que ver com as qualidades de cada um. Mas uma coisa é certa: todos nos encontramos no relógio da torre.

Agustina Bessa-Luís em Caderno de Significados

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