sexta-feira, 4 de outubro de 2019

LIBERTAÇÃO


Descerão por paredes sangrentas
e subirão do asfalto
ganindo com um prego na língua
com os pulsos atados às patas
sobre pulmões raivosos em barcos de esterco
e não olharão nem para baixo nem para
o alto mas para a frente
para o horizonte de fatias vermelhas
e para trás
para os afogados sem mar sem terra natal sem paisagens marinhas

cada um com um buraco em seu peito
esguichando palavras estridentes
descerão atravessando gargantas
e subirão pela espinha a golpes de jejum
descerão empurrando palavras
transportando-as ao pescoço como cintos de salvação
abrindo crateras nas cabeças queridas
e olhos nos olhos dos aflitos
subirão do asfalto
transparentes e feridos
com os olhos nas mãos
a cabeça no sangue
chegarão aos pares ligados pela boca
com um estandarte negro seguro nos dentes
e descerão sempre cada vez mais e cada vez mais alto
até chegarem à orla do inferno chorarem as últimas lágrimas e partirem de vez.

António José Forte em Poesia Portuguesa do Pós-Guerra

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