terça-feira, 21 de julho de 2020

LUÍS FILIPE COSTA (1936-2020)


Aos 84 anos, morreu Luís Filipe Costa.

Foi outras coisas, mas é como homem da rádio que o quero lembrar.

Essencialmente num noticiário do Rádio Clube Português no dia em que a PIDE prendeu Palma Inácio, dirigente da LUAR.

Impedido de dar a notícia da prisão, acabou o noticiário com a frase «Hoje esteve um dia de calor, mas esta noite felizmente há luar!»

Respiguei os textos que aqui deixo sobre a rádio, para lembrar o que a rádio ao longo dos anos da ditadura me deu e, duma certa maneira, também como homenagem a Luís Filipe Costa no dia emque, fisicamente, nos deixou.

O aparelho de rádio tinha um caixilho de madeira e a face era como uma máscara cega, olhos e boca em panos. Havia a mesma melancolia nos brados dos relatos, nas sinfonias, nas novenas de Fátima e na voz quebrada dos discursos de estado. Como se o espírito nos desse sinal do holocausto, alheadas sobre o enlace das silhuetas: estarmos vedadas de tanta finura, veemência ou persuasão. Ainda hoje me assola a tristeza desses sons que não escuto e me temo de um rádio aberto em surdina à minha beira. Vivíamos sob esse rumor a que só mais tardiamente demos sentido, quando o hóquei patinado se tornou uma paixão cívica.

Maria Velho da Costa em Missa in Albis

Conheci um guitarrista que dizia «a minha amiga rádio». Sentia um parentesco menos com a música do que com a voz da rádio. A sua qualidade sintética. A sua voz única, distinta das vozes que a atravessam. A sua capacidade de transmitir a ilusão de gente a grande distância. Dormia com a rádio. Falava para a rádio. Discordava da rádio. Acreditava numa Terra Longínqua da rádio da Rádio. Como achava que nunca encontraria esta terra, reconciliou-se consigo mesmo a ouvir a rádio. Acreditava que tinha sido banido da Terra da Rádio e condenado a errar eternamente pelas ondas sonoras, ansiando por um posto mágico que o devolvesse à sua herança há muito perdida.

Sam Shepard em Crónicas Americanas

Andava sempre à pesca de qualquer coisa na rádio. A par dos comboios e dos sinos, a rádio fazia parte da banda sonora da minha vida.

Bob Dylan em Crónicas 

Já não estou muito capaz de trabalhar, porque a memória, a vista, tudo isso inibe um tipo. Já não leio os jornais, não consigo. A minha ligação com o mundo é a rádio.

Luiz Pacheco

«Ouça, importa-se de baixar mais o rádio?»
«Ora essa. Desculpe, tenho a mania de o pôr muito alto.»
«Como os taberneiros.»
«Ou como os apreciadores de jazz. Como as prostitutas baratas, se quiser. O rádio, Guida, é um vício de solitários.»

José Cardoso Pires em O Anjo Ancorado

Durante o dia, a telefonia estava ligada para o emissor clássico da Emissora Nacional. Apenas ao serão havia uma interrupção do fluxo da grande música quando a voz do meu avô ordenava: “Meninas vamos ouvir a BBC”. Mudava-se de onda durante os minutos com as notícias de Londres lidas pelo Ferando Pessa ou pelo Augusto da Silva, sobre o desenrolar da guerra. “Aqui Londres, Estação da BBC na banda dos 41 e 49 metros.

António Cartaxo em Quase Verdade Como São Memórias

3 comentários:

Luis Eme disse...

Excelente homenagem a um Homem da rádio... e à rádio e às suas vozes.

Seve disse...

Um histórico homem da rádio e da cultura e que voz!

Sammy, o paquete disse...

No caminhar dos dias, chegamos a um degrau em que começamos a olhar para o lado, que tem um nome, mas que pouco gostamos de nomear.
Estes tempos em que vão partindo os que nos ajudaram nessa caminhada, são terríveis.
Apetece escrever uma série de coisas vividas, outras que se sabem, mas não sai nada. Então recorro a quem diz as coisas melhor do que podia eu dizer.