sábado, 18 de dezembro de 2021

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.


Um livro de seis-histórias-seis, uma delas extraordinária, A Cadeira, que gira à volta do dia em que o ditador de Santa Comba bateu com a cabeça nas pedras da esplanada do Forte de Santo António e aí iniciou o caminho para viagem sem regresso, ocorrida em Julho de 1970, prolegómenos da futura mudança de um país.

«Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.»


«A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas a. Ora, de uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não que desabam. Mas verdade é que desabam chuvadas, digo também, ou lembro já, para que não aconteça cair em minhas próprias armadilhas: Assim desabam bátegas, que é apenas modo diferente de dizer o mesmo, não poderiam afinal desabar cadeiras, mesmo abas não tendo? Ao menos por liberdade poética? Ao menos por singelo artifício de um dizer que se proclama estilo? Aceite-se então que desabem cadeiras, embora seja preferível que se limitem a cair, a tombar, a ir abaixo. Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caindo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira. Se o mesmo dissessem, se aos grupos se juntassem por homologia, então a vida poderia ser muito mais simples, por via de redução sucessiva, até à ainda também não simples onomatopeia, e por aí fora seguindo, provavelmente até ao silêncio, a que chamaríamos o sinónimo geral ou omnivalente. Não é sequer onomatopéia, ou não é formável ela a partir deste som articulado (que não tem a voz humana sons puros e portanto inarticulados, a não ser talvez no canto, e mesmo assim conviria a ouvir de mais perto), formado na garganta do tombante ou cadente, embora não estrela, palavras ambas de ressonância heráldica que estão designando agora aquele que desaba, pois não se achou correcto juntar a este verbo a desinência paralela (ante) que perfaria a escolha e completaria o círculo. Desta maneira fica provado que não é perfeito o mundo.»

 

  

2 comentários:

Seve disse...

JOSÉ SARAMAGO - o maior escritor português depois de Camões (não digo o melhor porque parecia mal...)

Sammy, o paquete disse...

A propósito – ou despropósito? – de Luís de Camões, cito de «O Ano da Morte de Ricardo Reis»:
«É como todas as coisas, as más e as boas, sempre precisam de gente que as faça, olhe o caso dos Lusíadas, já pensou que não teríamos, Lusíadas se não tivéssemos tido Camões, é capaz de imaginar que Portugal seria o nosso sem Camões e sem Lusíadas.»