segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

Os sublinhados saramaguianos inclinam-se hoje para os Discursos pronunciados por José Saramago aquando da entrega do Prémio Nobel da Literatura.

O sublinhado de hoje refere o segundo discurso, pronunciado no Banquete do Nobel, realizado no dia 10 de Dezembro de 1998, no exacto dia em que se cumpriram cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

E Saramago não perdeu a oportunidade de deixar bem vincado, que não sendo o mundo nada perfeito, isso acontece porque os governos olvidam as múltiplas injustiças que vão acontecendo.

«ALGUÉM NÃO ANDA A CUMPRIR O SEU DEVER».

«Cumpriram-se hoje exactamente 50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o interesse público por esta questão comece a diminuir já a partir de amanhã. Nada tenho contra esses actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas mais.
Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.
Não esqueci os agradecimentos. Em Frankfurt, no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que pronunciei foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E agora também aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de hoje: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam portanto.»

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