segunda-feira, 7 de outubro de 2024

LUAR

Quem me põe na pena palavras que não escrevi,

Na cabeça ideias que não tive

Na vida sensações que não provei?

Levantam-me do chão dos tempos e soltam-me num céu

Aborrecido a meus olhos,

Estrangeiro.

 

Sou eu e o outro, todos os palácios,

Fúteis transferências de sentido, aves de sangue, expostas,

Embalsamadas, duplas, cidades

Da memória.

Vozes modernas inventam-me a criação das odes,

Completam-me os sonetos.

 

Não sei por que me vão falando.

A minha boca calou-se quando eu quis.

E a minha cabeça, vazia, nem em filme animado

Se padece,

Transformou-se em pedra, apagada ao luar

Que eu próprio não usei.

 

Cento e dezoito anos não são tempo

Que faça arrefecer um corpo

Escrito.

Podem ser apenas uma noite, um sonho alucinante,

Ou um dia inteiro, de natureza desperta,

Um fruto, uma folha, uma raiz.

 

Oiço dizer Seattle, e essas mudanças de clima

Que nada tem a ver com o nascimento da alma

Projectam-se no globo etéreo que a minha

Consciência em expansão

Impede que enluteça. A ética também é irmã

Do efeito de estufa das ideias.

 

Dou uma luz indirecta como a lua

Às mãos que me ressuscitam nesta tarde de sol,

De calma, de pobreza de espanto,

E muitas, muitas cicatrizes na pele do pensamento.

Somos ilhas, altivas, mas somos arquipélago,

Ó mar carbónico de fumo, aqui, à nossa volta.

 

Armando Silva Carvalho em  Resumo: a poesia em 2010.

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